terça-feira, 14 de fevereiro de 2012


... andava por aquelas pedras como um animal perdido que se encontrava em alguns pedaços, o corpo
 cansado, sentidos aguçados, a única dor a dos pés e braços, eram o que restava de alma...


E ter que roubar tudo em imagens para um dia poder recordar e escrever... roubar aquilo
que era pleno e não se entrega às lentes, viver de fragmentos num futuro distante e sedentário...
Algo meu ainda vaga por aquelas pedras, apenas outras dimensões de uma solidão de alma
e de lugares - como os lugares.


Quatro elementos a arrancar a alma das mesmices humanas, éramos livres naquelas horas,
até de nós mesmos....




Pato do Eurípedes


Abril, 19, 2011. Boa parte de mim ainda residia em Quixadá. Outra parte voltou para caçar fotos. 
Com dois grandes amigos, os que me iniciaram nas pedras daquela cidade. Passávamos pelo Açude do Eurípedes em direção a nossas grutas (ou voltávamos?). O açude estava cheio e muitas aves ali dançavam, e este pato selvagem - preto - abria suas asas em nem sei que tipo de êxtase, congelou meu olhar. Solitário e pleno, único ao meio de tantos outros iguais, não poderia ter deixado de ser caça de minhas lentes tortas. Nos encontrávamos, mesmo sob quilômetros de distância,
mesmo sob o peso de mundos diferentes e paralelos, anos-luz de distância, mas nos encontrávamos. 

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

03.10.2010


Outubro, 03, 2010. Domingo.

      “Mundus vult decipi; ergo decipiatur” (Petrônius) 

Onde quer que, entre sombras e dizeres,
Jazas, remoto, sente-te sonhado,
E ergue-te do fundo de não-seres
Para teu novo fado! (Pessoa)

“Então eu descobri que os seres humanos não mudam porque estão desperdiçando sua energia, não mudam porque estão exercitando sua vontade, que eles julgam ser extremamente nobre, o que é chamado de liberdade de escolha. E, além disso, eles não sabem o que fazer com ‘o que é’ e, portanto projetam ‘o que deveria ser’, e talvez também porque aquilo, o nirvana, a Moksa, o paraíso, é muito mais importante do que ‘o que é’. Esses são os bloqueios que impedem os seres humanos de mudar, essa é a razão porque não transformam radicalmente a si mesmos. Se vocês compreenderam isso profundamente, com seu sangue, com seu coração, com todos os seus sentidos, então vocês verão que há uma transformação extraordinária sem o menor esforço.”(Krishnamurti).

4h. Dia inútil. À tarde, feijões pretos e arroz à carreteiro. Nada de pedras ou noite nas grutas. Eleições e justificativas mais tarde. Estou completamente alheio a este sufrágio inútil. Seis gatos preguiçosos pela casa, quatro cachorros neuróticos. A cachorrinha já está enxergando melhor e livre de carrapatos. Ontem, blues e uma noite devassa, novamente com a senhorita K.
Sexta passada a cidade parecia invadida por sonâmbulos agitados. Esvoaçavam perigosamente nos carros ou pelas calçadas, um movimento fora do normal, clima tenso e pesado. Não é mais, há muito tempo, a mesma cidade aonde vim morar em 95.
Prefiro a palavra “ocultista”. Um “ocultista cético”, assim perco minhas definições. Em que acreditar? Há sentido em acreditar? A coisa – em – si é inatingível, dela temos construções, ilusões. Mas é um minúsculo fragmento desta coisa, do universo, que “ilusiona”. Com meus sentidos, atinjo uma ínfima parte do todo, aprendo a me mover nele, crio um universo particular. Formo um painel virtual e nele me desloco.
Nada de errado neste processo, todos os seres assim o fazem. Virtualizam assim seus mundos. O único ato criativo nisso tudo é a interpretação. Creio nesta construção, transformo-a através de meus conceitos e condicionamentos, crio assim minha atmosfera existencial. Uma estreita faixa de condições onde posso agir conforme um vivente. E aí se desenrola meu processo, até a morte. Sobrevivo sendo jogado pelos impulsos, tolhido ou estimulado pelos condicionamentos e pelo medo, sempre à mercê de correntes profundas e desconhecidas. Crio a ilusão de ser algo, uma individualidade, independente. Humanizo-me dia a dia, cada vez mais à mercê das profundezas que não vejo.
Ser ocultista é justamente tentar conhecer estas profundezas, as coisas que realmente movem nossas existências. Inicia-se com uma mortal quebra de paradigmas. Sei que, em essência, isso não é assim, e que deve ser vivido de outra forma.
Primeiramente, somos tidos como excêntricos ou até loucos, incompreensíveis e perigosos para o próximo, na verdade. Temem algo em nós. Desconhecem a direção de nossas atitudes, de nossos ventos. Ignoram o caminho que começamos a seguir, um caminho que, no íntimo, causa-lhes horror. Como se nossas atmosferas precedessem nossas escolhas, pois sempre fomos tidos assim, sempre fomos vistos como, no mínimo, esquisitos. Essa coisa é sempre percebida pelas pessoas, muitas vezes antes de nós mesmos percebermos.
O velho Krishnamurti há muito, literalmente, quebrou meus dias (nem tão comuns) de outrora. Nunca mais fui o mesmo após a leitura de uma de suas palestras (não me recordo qual) trazida, certa tarde, em xérox, pelo meu pai. A partir de certo dia, então, começamos a perceber melhor este mundo de ilusões, e creio que cada ocultista teve lá seu “Dia D”. Talvez Weill prefira o termo “mutante”, o que acho também correto. Esta coisa, esta diferença, sempre esteve conosco, precede nossa existência.

O que traria de mais recente: o Krishnamurti que se fixou em mim, que construí, deve morrer. O Mestre foi sempre bem claro em seus escritos, os discípulos sempre corrompem a obra. O “mate o Buda” do Zen. Compreensão de existir-se como passagem, do ônus daquilo que é ilusória e perigosamente retido. O crente não louva deus, louva seu deus, sua projeção, portanto. Cria uma falsa garantia com isso, é movido pelo medo, foge de sua impermanência. Pactua garantias com a coisa, negocia com o universo, escondendo-se da verdade em si. Verdade que não quer perceber. A sua grande mentira.
A quebra de paradigmas tão queridos pelos outros faz-nos perceber verdades incômodas, perigosas ao status quo desta existência de zumbis. Mais distantes das mentiras, nossos caminhos vão a direções completamente desconhecidas pelos demais.
                                                                                      * * *

Amanhece mais um dia. Fome. Penso em ir às pedras, buscar algumas fotos, (dês-)-pensar talvez o dia.

                                                                                      * * *

setembro, 2011


... mais uma lua cheia, as orelhas fervem ao gosto de um luto, queria um sábado tranquilo e sonhento pela casa... Odin resolveu debochar covardemente deste luto básico, então as orelhas fervem... esqueci que mesmo híbridos podem sucumbir à sede e não quero voltar ao mercadinho... fervem-me as orelhas entào, sobe a gorda lua com ares de deboche, falta-me a água para esfriar as orelhas, não vou fotografá-la hoje, trocarei a máquina por garrafas e a quietude monastérica deste apartamento por mesas onde possa ao menos esquentar em paz estas orelhas... mundanas garrafas, vís arruaças, tremei!!!!!!!

05.07.2088


(Te-diarium Inexistencialista: 05/07/08)

Mais vontades de escrever. Talvez o sake, ou a preguiça de sair à caça mais uma vez... Preferi ficar em casa, sem pensar em quase nada que pode estar acontecendo lá fora nos bares. Talvez precise de mim hoje aqui. Talvez os teclados precisem. Não sei. Ainda vou pensar.

Estive até a pouco tentando jantar carbonos no esquina. Uma cachorra branca e com manchas pardas claras, focinho comprido e um olhar expressivo, humano, seguiu-me até a mesa. Pedi uma carne mal passada para comermos juntos. E cervejas. A pequenina deitou-se ao lado e, após alguns carinhos, começou a dormir. Chegando a comida, não fez questão de nenhum pedaço. Queria apenas a minha presença, os afagos. Ficamos ali um tempo. Um pedinte acabou levando o jantar já embalado para viagem (iria colocar nas lentilhas que agora cozinho). Quando fui embora, seguiu-me até o moto taxi, correndo pela rua quando partimos. Não sei onde parou. Cortou-me o peito e minha vontade foi trazê-la comigo. O farei quando alugar uma casa que tenha ao menos um quintal.

Passei a quase entender esses assédios que certos animais nos presenteiam. Ao menos, respeito. Um respeito com profundas razões místicas, creio. Penso numa gata mourisca que me acompanhava em Canindé, quando lá trabalhei por dois anos (morava na capital e dormia lá por dois dias). Atendia comigo, subia na mesa, ia para alguns pacientes, mas sempre ao meu lado. Quando saí de lá, ela não viveu três meses. Não a levei porque o local era amplo, com um pequeno açude e muita mata ao redor. Ela deixou de comer e morreu. Não estava doente.
A água das lentilhas quase seca. Três folhas de louro e baixamos o fogo. A vontade de sair assalta-nos em pedaços, forte às vezes. O sake, Tozan (o mais ordinário e barato), vem a calhar agora.

Quarenta e um anos em março. Uma separação bem merecida logo depois. Muitos noivados, nada de filhos. Vida de errante, até diria. Sem planos, princípios, sem sonhos. Não recomendo, mas não a trocaria por outra. Em uma pequena e estranha casa de três cômodos e sem quintal, num interior, ainda alugada... Um carro que não uso, nenhuma reserva em conta, alguns saques na geladeira e 5 pacotinhos de kumbu, a quem isso poderia despertar inveja? Quem poderia pensar em “realização”? Entretanto, existo assim, e penso em realização. Nada tenho do que se poderia chamar de bens, não juntei nada destes 14 anos de profissão, inexisto assim. Sinto estar num caminho certo, na estrada certa. Não posso criticar os caminhos mais convencionais, os que decidiram (?) por família, filhos, bens... Ate poderia ter caído nisso. Mas não suportaria. Prefiro minhas angustias atuais, as que me assolam agora.

Formei-me em medicina em 1994, em Natal, sem nenhum sonho e com um bemprego garantido num interior de 3000 habitantes. Passei a querer (?) medicina uns seis meses antes do novo vestibular (estava há dois anos e meio em engenharia elétrica). Minha mãe já intuía este encontro. As mães quase sempre têm razão. Por outras cargas d’água vim parar no Ceara, um ano depois de largar a vida militar. Uma namorada que conhecera nos tempos de caserna convidou-me para uma jornada de psiquiatria em Fortaleza. Distribuiu meu pobre currículo de clinico em vários hospitais. Acabaram me chamando em dois. Fui perdendo dois terços do que ganhava, mas o impulso era maior. “Rumo das venta”. A coisa quase não deu certo. Devo estar no Ceara há uns nove anos. Três aqui em Quixadá. Francamente, não quero ir embora para outra vida. Assim, pareço me agüentar.

As lentilhas estão prontas, algo salgadas. Sem carne. Merecem um arroz branco sem sal. Não resisto e coloco alguns pedaços de kumbu, aquelas algas que combinam mais com o azuki. Não deve meu desjejum de amanha ficar tão intragável.

Minha Basteth faz falta agora. Talvez gostasse de lentilhas. Perguntas que ainda estão no ar, o quarto vazio, suas fotos no computador, a culpa por tê-la soltado naquela manhã. Estaria aqui agora? Seus olhos na fotografia buscam os meus, mas é como se estivessem distantes. Longe. Ouço a quinta faixa de “O Mapa”, do Uakti. Na primeira vez que o fiz, ainda era estudante, era em um bolachão. Lembro-me de uma angustia que me assaltou inesperada, profunda e cortante: a imagem pura da morte. Abri então não lembro que livro e deparo-me com uma estampa antiga, a imagem de uma alma pálida e feminina (como devem ser as almas) sendo levada às terras da morte, na barca de Caronte. O que parecia ruínas de uma cidade despontava no horizonte distante e marrom. Não sei que livro era este, onde deve estar agora. Passei mais de uma semana em algo que posso comparar a depressão. Isso passou a se repetir sempre que escutava aquela musica. Bastet parece que me olha daquela outra margem do rio, daquela cidade dos mortos. Seus olhos castanhos esverdeados parecem cruzar a fronteira destes mundos e buscarem os meus. Trazem-me perguntas idiotas, sem sentido, inevitavelmente. Quanto tempo ainda tenho de vida? Como será minha morte? Pergunto isso como todos os prisioneiros condenados à morte perguntam antes da execução. Passam estes prisioneiros a vida inteira fugindo desta consciência de condenado e alguns talvez ate enlouqueçam com isso. Apegam-se com todas as fibras a coisas passageiras e fundam nisso suas sanidades. Continuam então o sistema que os escraviza, que os suga desde o nascimento até sabe-se lá quando.

Quando começamos a compreender o que são realmente os sistemas, os padrões que se repetem em seus diversos níveis, todas as coisas passam a ser diferentes. Aqueles pontos principais que, se compreendidos, revelam novas e inesperadas regiões nunca antes sonhadas pelo pensador. Chamaria de “regiões libertarias” até. Não lembro quando comecei a pensar nisso. Analisando os padrões, vemos que todos os sistemas se repetem. Basta extrapolar para outras regiões superiores. Tomo aqui a metafísica, o misticismo. E tudo cai em outro nível de compreensão, obviamente incoerente e sem sentidos, paranóide até, àqueles que dormem.

A nenhum agregado ou sistema interessa a perda de seus componentes. Mecanismos estão à disposição deste para que isso não ocorra. Isso pode ser chamado de “tendência escravizante” do sistema. Fácil observar tal propriedade. São as limitações impostas ao DNA de todas as células nucleadas, são as classes sociais de nossas sociedades, tudo aquilo que mantém coisas em seus respectivos lugares.

Todo o sistema é parte de outro sistema maior, e com outros sistemas deve integrar-se para a manutenção da estrutura geral. Tiramos daí que existem diversas qualidades de integração, algumas harmônicas, outras nem tanto. Um determinado sistema pode quebrar a harmonia de suas integrações com outros sistemas, dependendo de certas condições vigentes. Todo sistema que não consegue mais funcionar em harmonia com outros sistemas interligados, torna-se uma espécie de “sistema suicida”, ou “oncogênico”. Fatalmente será extirpado pelo restante dos sistemas, ou sucumbirá, não sem antes levar todo o restante ao desequilíbrio. Toquei-me disso quando estudante, após ler um artigo de patologia sobre neoplasias. Lembro-me do quanto isso perturbou-me quando pensei na humanidade em si. Conclui que somos uma espécie de sistema oncogênico. Meus olhares nunca mais foram os mesmos para com nossa espécie.
Creio que um pensador deve mergulhar às ultimas conseqüências naquilo em que seu espírito trabalha. Uma espécie de “ética da plena verdade”. Com o amadurecimento deste pensador, ele fatalmente será excluído de todo o restante, não comungará com o sono geral de outros pensadores (imposto pelo sistema). Um pensador deve também saber até aonde servem as verdades escritas, tidas como fundadoras ou aceitas por todos como base. Isso vale para bíblias, para tratados místicos, científicos, enfim, para tudo o que é tido como “verdade”. Sim, o preço sempre será alto.

Há uma “coisa” inteligente que mantém toda a humanidade nesta desgraça existencial que conhecemos. Somos partes ínfimas suas. Existimos ou “subexistimos” como autômatos movidos à ignorância, a sono de espírito. E assim mantemos esta podridão existencial. Somos treinados a não perceber um centímetro a mais do utilitário, do que nos mantém autômatos e mortos. E assim seguimos o caminho. “Ilusionando” uma mente e uma individualidade próprias. Como frutos de um condicionamento ordenado e proposital, inteligente, escravizante. Curioso é que os verdadeiros místicos de todos os tempos sempre estiveram à nossa frente em relação a isso. E que não há uma ponte possível entre esta nossa lógica imposta pelo sistema e o verdadeiro conhecimento. Nunca haverá. Não interessa ao sistema a libertação de nenhuma de suas partes, como dissemos. Por isso, o termo “ocultismo”. As verdades devem ser ocultas daqueles que dormem. Coisas como pérolas aos porcos.

Fomos treinados em mentiras fatais. Pensamos que somos uma espécie de gloria da criação. Acreditamos num caminho suicida e devastador, justificamos isso tudo com interpretações e adulterações de escritos sagrados. Superiores aos outros animais. Mais dignos. Portadores de alma (qual foi o papa que concedeu alma aos selvagens e aos escravos? O que isso justificou?). A própria Divindade tomou feições humanas... entretanto, a vida mostra-nos que todos os animais possuem sistemas orgânicos semelhantes; que, se uma explosão solar varresse “nossa” terra, minhocas, coelhos e humanos virariam cinzas da mesma forma. Dói entender que somos todos iguais perante a criação, não importando que apetrechos complexos assombrem tais cérebros. Que nosso “direito” à existência é idêntico ao de um rato ou um porco. Por que isso dói tanto? Como os antigos sabiam disso, os budistas daqueles tempos, os hinduístas, os chineses... O bom senso foi quebrado com os judeus, passando esta distorção aos cristãos e maometanos.

Aos poucos, liberto-me desta lógica humanóide e absurda, baseada num sistema condicionante e oncogênico. Não, não diria aos poucos. A coisa vem súbita, destruidora, como a vida. Nunca mais se é o mesmo depois de ler-se Krishnamurti, depois de mergulharmos naquilo que chamo de “metafísica” budista. São chaves que ainda existem. São marcos que direcionam o pensador para fora do caminho traçado, da lei dos senhores. Questão de escolha.

Duas e seis da manhã. As lentilhas com arroz branco e kumbu ficaram passáveis. Precisava cozinhar para mim, tomar certo cuidado. O sake desce bem. A noite continua angustiante, como são todas as noites solitárias. Penso nas amigas que poderiam estar aqui, no sexo sempre bem vindo, coisas que ainda me escravizam. Somos corpos também, corpos em transição em noites difíceis.

                                                                                                        * * *

29, 30.10.2008


(Te-diarium Inexistencialista: 29-30/10/08)


23:57h: Quarta em seu final como minhas últimas energias do dia. A horizontal veio ontem por volta das 3:30 da madrugada, após elaborar uma aula. O sono foi mais difícil. Inquieto. Em curtos períodos. Como se uma grande e estranha energia passasse pelo corpo. O corpo sentia sua inquietante passagem. Desperto as seis e pouco. Para um dia cheio, quase quarenta pacientes, crises, o tempo de ir do ambulatório para a faculdade. O dia com uma fatia de pão de soja com bastante café. Percebi-me com uma disposição quase maníaca para as coisas. Resolvi não sair. Dormir com a cabeça para o norte?

Não sei se triste ou com remorsos. Deixei de sair com a sra. R., sua inquietação com minhas companhias atuais beiram ao ódio, isso tem sido assim nos últimos dias. Deixei de sair, deixei o chope do “Mambo” com seus sushis estranhos. Deixei de comer. Esgotar sóbrio as últimas energias do dia. E só.

Somos por demais domésticos. Pobres cães acorrentados à própria sorte, aos condicionamentos e ilusões de um submundo que escraviza e afunda. Sós, num mundo insano e brutal que criamos. Partes de um monstro suicida e perigoso que mantemos. A única beleza é aquilo que resta de selvagem nas coisas, aquilo que, por segundos, ainda não contaminamos com nosso desespero. Dói pensar-me humano.

Nenhum conhecimento contrário ao “sistema” pode sequer esboçar um sentido. Fomos condicionados a simplesmente desprezá-los, taxando-os ora de excêntricos, ora de insensatos. E são insensatos aos que servem ao “sistema”. Não seguem as diretrizes deste. A realidade, quanto mais profunda, mais fere. Como setas destruidoras, envenenadas, setas que penetram no coração e envenenam. Que podem matar o “sistema”. Falo de coisas perigosas como o saber-se um mero escravo acorrentado ao medo, o conhecimento da insanidade humana, daqueles que sofrem da “normose” (Weill). Ou da rotina suicida e brutal dos humanóides. Falo da própria impermanência das coisas e da inexistência de uma individualidade independente. Da morte de todos os deuses, da estupidez das religiões, meras “continuíces” infantis dos que desconhecem a morte. Da ignorância existencial que exala de nossa filosofia, ora utilitária, ora sensacionalista. Da grande punheta que é nossa cosmovisão.

Os antigos sabiam demais. Os pré-bramânicos, os primeiros budistas, os gnósticos. A luz sempre brilhou oculta nas cinzas do caminho. Há intenção nisso tudo, há um propósito neste “sistema” que sufoca e escraviza, há inteligência nisso. E tão ocultos a nós quanto à luz nas cinzas.

Não sinto ódio nem dó desta humanidade. Mesmo com minha cegueira e descrenças, estou onde e como deveria estar. Não escolhi isso, não há uma continuidade de escolhas que justifique o termo. Vivi a raiz desta ilusão, vivi impulsos, movimentos. Quase senti a inteligência suprema, a sensatez da Coisa, seu hálito selvagem e misterioso. Sobrevivi com o que me restava de ignorância. Nos raros momentos de profundos mergulhos, percebi um íntimo cada vez mais vazio de planos e desejos. Não formei um passado como um altar onde contemplaria estatuetas inúteis quando decrépito. Nada
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tenho para me orgulhar do que fiz ou não fiz. Os arrependimentos são falsos, inconsistentes. Cada vez mais sobrevivo sem o velho tempo. Para um dia sobreviver num “sem-espaço”. Isso não dói. Como não dói ser descrente de tudo, habitar um dos corpos de um místico cético.

Interessante saber-se tão consistente e palpável quanto um arco-íris ou uma nuvem. Saber que assim são todas as configurações que me assolam, tudo o que me faria sentir humano. Não consigo crer em fábulas, essas ilusões intencionais configuradas pelo sistema. Em minhas preces, somente imploro à Coisa mais uma dose de lucidez. Não posso negociar com deuses e anjos tão impermanentes quanto minha estupidez. Tiro destas divindades este fardo. Amo-as, como amo cada expressão que percebo da Coisa.

Deixar que as ilusões derretam-se ante o fogo daquilo que é, diluam-se na própria insensatez nesta qüididade que destrói e desbasta enquanto simplesmente acontece... isso que não tem sonhos nem objetivos, nem sentidos (daqui, de onde pensamos percebê-lo)... o Sagrado Ínfimo que representa-nos diante do todo, da Coisa...
Como poderia odiar aquilo que construí enquanto dormia? Como poderia continuar seguindo este caminho que essencialmente nunca segui?

Não veio o sono. Entretanto, algo precisa tomar a horizontal. Depois de um banho. Não sei como será o amanhã, o daqui a pouco quando o sol resolver nascer. Que monstros e fantasmas tremerão mastros e velas desta nau errante a que chamamos “dia”. Não sei. Não será certamente um “futuro”. Cansa-me viver apenas de palavras inúteis.
São 3:29h.
                                                                                      * * *

(...) Isso deve ter sido escrito há quase um ano ou pouco mais, em um final de por do sol no Skina. Acho que estava menos angustiado que o normal. Pensava nos “arquétipos” do louco e do viajante. Os dois tipos marginalizados pelo sistema. Em que diferenciariam, quais suas relações com o próprio sistema. O viajante percorrendo a senda transcendente, vivendo a impermanência. O louco, visceralmente aterrorizado com a proximidade da consciência de transcendência. Acho que foi Groff quem sugeriu ser a psicose uma experiência cósmica abortada. Isso faz sentido a partir de certo nível de compreensão, certo nível mais profundo. Algo rompe com as fronteiras usuais na psicose. Penso no doente tentando desesperadamente agarrar-se a cada caco, a cada fragmento vivo e desconectado da “realidade” perdida. A “realidade” convencional, condicionada, ilusória. Uma iluminação às avessas. Embora o mesmo padrão aqui, é impossível ao louco perceber que a falsa realidade foi fragmentada, isso por questões estruturais. O desespero e a ignorância mantêm cada caco vivo, exatamente como nos “normais”. Mas os cacos destes últimos não atingiram certa região existencial de fragmentação. O viajante não se agarra a fragmentos, nada investe neles, então os cacos não sobrevivem. Decompõem-se.

17:35h. Chega de escrever bobagens. Viajaremos ao Vale das Borboletas para uma “desasada” solenidade, com um amigo. Voltaremos ainda hoje.

23.11.2008


(Te-diarium Inexistencialista: 23/11/08)

   “O universo não é uma idéia minha.
A minha idéia do universo é que é uma idéia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso”.
F. Pessoa, 1.10.1917

O:51, Domingo.
Dias extremamente quentes. Um belo céu lá fora, Órion a dominá-lo. Acho que foi das primeiras constelações que aprendi a reconhecer, juntamente com escorpião e o cruzeiro do sul. Foi num acampamento, tinha 11 anos e era escoteiro. No interior do Paraná. Passava muitas horas com a cabeça fora da barraca olhando os céus, “abestalhadamente” fascinado. Um hábito que nunca perdi, uma necessidade até. Milhões de céus contemplados desde então. Os tristes e apagados céus das grandes cidades, os misteriosos céus do alto-mar (quando era militar e viajava em navios). Os belos céus dos campos. Este céu que agora cobre a casa.

Calmarias estes últimos tempos. A nau segue silenciosa, uma quietude suspeita e abafada. Como se diante de um final de rota, de um período. Percebe-se algo tenso no ar, mas sutil. As palavras saem lentas e penosas apesar da vontade de escrever. Como se os sentimentos abaixo do mar escuro custassem a despontar em sua superfície. E o fizessem lenta e parcialmente. Não tenho medo destas águas estranhas, do que possa vir depois. Hoje tivemos momentos de “quase paz” à tarde. Com as crianças no ambulatório, fumando abaixo de uma árvore na faculdade, sensação de sossego. Ou quase isso. Com o despontar de um esboço de consciência diferente. Pela primeira vez, preparei estômagos bovinos (“dobradinhas”, “mondongos”). Ficaram passáveis. Terminaram para mim tais mistérios culinários.


3:27h. Lentidão incrível de palavras e muita vontade de escrever. Algo estranhamente nostálgico tenta mostrar-se por debaixo das águas (ou ainda são os efeitos das dobradinhas?). Hoje seria uma grande noite para vinhos e mulheres. Não trabalhamos amanhã, final de semana... Mas estamos aqui a escrever, sóbrios e castos. Estranhos tempos...

                                                                                                  * * *
4:07h: Uma tartaruga passeia sonolenta pelo teclado.
                                                                                                  * * *
Escrevo asneiras por aqui desde 23 de junho deste ano, casa amarela, um dia antes de perder minha Bastet. Cinco meses. Pensava em escrever por escrever. Como fotografar dias curiosos e trabalhá-los (como tento fazer com minhas fotografias). Nenhum limite à pena. Escrever. Deixar simplesmente as palavras ocuparem seus lugares. Tento deixar fora disso quaisquer críticas ou intenções “literaturescas”.  Releio estas folhas como quem passeia por um álbum fotográfico a tentar ordenar um passado que se recusa a perder-se. Ao contrário de muitos passados perdidos que tive, que deixei escorrer simplesmente. Coisas assim modificam nossas relações com a percepção do tempo, da sucessão de sentimentos e impressões que o configuram. Não sei até quando isso vai continuar, nem sei se estes escritos escaparão da lixeira. Entretanto, guardá-los exatamente como foram produzidos é uma forma de tolher quaisquer ambições ou autocensuras (disso estamos cheios).

Sim, quando fedelho, pensava em ser “escritor”. Isso me perseguiu por um bom tempo, até perceber que nada tinha a dizer aos outros. Nada de excepcional que valesse todo o trabalho e o estresse de uma primeira impressão. Em termos “artísticos” e “literários”, melhor um lugar ao colchão do que ao sol. Estes dias andam terrivelmente secos e quentes por aqui. São cinco horas, as estrelas se foram há algum tempo, há um sol nascendo ali fora, a posição horizontal faz-se agora imperiosa.

                                                                                          * * *

23:16h:  Dia entediante, um mau-humor daqueles. Saio do quarto depois das 16h. Sonhos estranhos pela tarde. Acordo com a campainha. A vizinha da frente (filha de uma paciente). Suspeitavam de uma tentativa de suicídio. Amitriptilinas, talvez mais de quarenta. Estaria sonolenta desde ontem. Descobriram muitas cartelas vazias. Chego ao quarto, ao lado de sua rede. Não me parecia alguém com quarenta amitriptilinas dentro. Os familiares pediram-me para não abordar o assunto diretamente. Conversamos um pouco sobre sua vida e perdas recentes, sobre sua religiosidade e as medicações que tinha feito uso. As medicações atuais, seus efeitos. Modificamos seu esquema terapêutico. De súbito, senta na rede e toma minha mão. Começa a chorar e revela-me que realmente pegou todas as amitriptilinas que encontrou e iria tomá-las. A pobre senhora chegou a buscar um copo de água e dirigiu-se ao banheiro do quarto. “... Então eu vi a minha mãe; olhava para mim, tão real quanto o senhor aí. Senti o copo voar longe e então cuspi fora os comprimidos. Eu a vi rindo depois.”. Falou-me então, após as lágrimas, que estava presente na morte da mãe (e anos depois, de seu pai). Vira o “espírito” de seu pai próximo ao corpo, poucos dias antes de sua morte.

Ainda conversamos um pouco sobre religião. Passei-lhe algumas idéias, coisas como a pouca importância desta vida, a impermanência e outras formas de existência após a morte. E o fato provável de sua genitora estar, de alguma forma, presente ao seu lado. Confesso que saímos mais aliviados, ela de sua tristeza, eu de meu belo humor. Parece que recobramos um pouco da lucidez nestes encontros. Pretendo visitá-la amanhã.

                                                                                 * * *

Sonhei que estava em uma sala com uma de minhas mães (irmã de meu pai, residiu conosco por um bom tempo, desde meu primeiro ano de vida; foi uma mãe para nós, preparava as refeições e era – é – uma excelente cozinheira). Havia um animal parecido com um escorpião numa das paredes. Parecia voar para outras paredes. Minha mãe pediu-me para matá-lo. Fiquei a observá-lo, adiando sua morte até que ele voou ao meu pescoço, abaixo da nuca. Lembro-me de pensar em seu veneno fatal, do medo que sentia. O escorpião fazia movimentos rápidos com suas patas e eu esperava a ferroada. Pedia para minha mãe tirá-lo dali. Nenhuma dor, apenas o medo e a apreensão. Era um grande escorpião, talvez como uma lagosta negra. Parecia-se mais com uma lagosta de antigos desenhos medievais (agora me lembro disso).
                                                                                  * * *

Depois desta visita, ainda fui avaliar pacientes no hospital. Uma já bem conhecida por suas tentativas de suicídio (traços “borderline” para complicar tudo mais ainda). Chegara de um hospital da capital após ter ingerido meio vidro de “chumbinho”. Poderia ter morrido. Sua expressão não era de forma alguma depressiva e estava bem clinicamente. Um certo “prazer” no olhar.

Seriam os estados depressivos responsáveis por este tipo de consciência “rasa” ou sem envolvimentos com a espiritualidade? Ou esta consciência facilitaria o surgimento de depressões? A religiosidade é considerada um fator de proteção contra suicídios, e venho observando isso na prática há um bom tempo. Penso que nossas religiões de “etiologia” judaico-cristã sejam “metafisicamente” pobres para um alcance maior da consciência. Focalizam sobretudo o pecado e um sistema de recompensas e punições no pós-morte. Exatamente como um bom negócio. Quase sempre ao lado do poder e das instituições. Como não progredimos nada em termos de religiosidade aqui no ocidente. Penso nos belos textos budistas e zen-bustistas, nos textos taoístas e bramanistas. Como continuamos pobres e ingênuos. A coisa foi violada em nome do poder. Basta um ligeiro estudo destas religiões.

(0:40h, 24.11.008) - Parecemos verdadeiros autômatos transitando pela vida num sono profundo. Criados em um “canteiro existencial” muito bem delimitado e preparado para este sono. Exatamente como fazemos com alguns animais para o abate. Parece haver todo um jogo de ilusões organizado sistematicamente para a manutenção deste sono. Teriam todos estes autômatos a capacidade de despertar? E o quê resultaria deste despertar para o sistema? Que outras propriedades e poderes existiriam ao alcance para além destas fronteiras? Existiriam caminhos para esta revolução?

Não poderiam existir caminhos, uma vez que todas as ações nascem de uma mente condicionada e em sono profundo. Isso foi o que os zen-budistas mostraram, o que o velho Krishnamurti tão bem frisou. “A verdade é uma terra sem caminhos”, disse.

“ . . . Sostengo que la Verdad es una Tierra sin caminos, y no es posible acercarse a ella por ningún sendero, por ninguna religión, por ninguna secta. Ése es mi punto de vista, y me adhiero a él absolutamente e incondicionalmente. La Verdad, al ser ilimitada, incondicionada, inabordable por ningún camino, no puede ser organizada; ni puede formarse organización alguna para conducir o forzar a la gente por algún sendero particular. Si desde el principio entienden eso, entonces verán lo imposible que es organizar una creencia”.

Nossa consciência, seu referencial, existe sobre certos limites bem definidos. Seus estados variam como uma função limitada, uma equação que permite pequenos deslocamentos ao redor de um eixo definido e dentro de uma região específica. Esta região poderia representar todos os possíveis estados mentais experimentados dentro desta equação. Isso funciona como uma curva delimitadora, onde estes estados possíveis seriam passíveis de um retorno em direção ao eixo. Daí a constância e certa previsibilidade de nossos estados mentais. Quando um vetor-consciência atinge um estado mental distante o suficiente do centro (eixo), o retorno aos estados anteriores torna-se impossível, alterando toda a equação inicial. Deslocariam estes estados de forma excêntrica, até imprevisível. É o que percebemos em certos “transtornos mentais”, funcionamentos e equações aberrantes, outros estados mentais impossíveis de experimentação dentro dos limites da função inicial.

Os transtornos mentais de ordem psicótica, a exemplo, deslocariam este eixo de equilíbrio, alterariam a equação irreversivelmente. Estes pacientes experimentariam estados mentais inacessíveis aos que seguem os padrões usuais, como as alucinações, os delírios e as aberrantes formas de interpretação da realidade. Pergunto: Que alterações ao esquema traria a “consciência cósmica” ou o dito “despertar”? Seria provavelmente uma alteração irreversível. Penso em algo transcendendo o simples plano tridimensional traçado acima. Não teríamos talvez equações ou funções definidas nas dimensões da “normalidade”. Penso ainda que tais estados mentais “aberrantes” trariam modificações (danos, no caso das psicoses) neuronais importantes e irreversíveis.

Poderíamos trazer em nossas estruturas possibilidades de tais deslocamentos aberrantes (os psicóticos). Mas seriam as vivências anômalas resultantes deste movimento as verdadeiras responsáveis pelos danos neurológicos ou de outra ordem? Penso que sim, pela subjetividade exibida nos pacientes com um mesmo diagnóstico. Minha “esquizofrenia” é diferente das outras esquizofrenias. Apesar do mesmo padrão (alucinações, delírios), os sintomas adquirem particularidades que dependem do meio, do sujeito, de sua cultura. Um escuta as vozes de deus. Outro, de um parente morto. Outro, ainda, convence-se de que é um profeta, um escolhido. Alguns são perseguidos por câmeras e toda uma parafernália de instrumentos de controle e observação. Um padrão, vários “recheios”. Mesmo que haja uma “falha” neurobiológica” que resulta nestas modificações, no deslocamento dos estados mentais em outros eixos anômalos, é a experiência do sujeito nestes novos estados que definirá a qualidade dos sintomas resultantes deste deslocamento. E perpetuará ou caracterizará a lesão neuronal.

Algumas situações traumáticas levam a alterações da personalidade em não psicóticos. Após determinada situação traumática, a pessoa passa a apresentar um grande aumento da ansiedade “basal”, ou sintomas depressivos que não experimentava antes. Alguns vão ao suicídio. Graficamente, a experiência traumática levaria o vetor-consciência do indivíduo a uma região bastante afastada do eixo central, o que não acarretaria a formação de outro eixo anômalo. Embora os retornos aos estados mentais anteriores e usuais sejam dificultados e outros estados sejam agora comuns. Houve uma alteração na capacidade de deslocamento do vetor aos estados e regiões anteriormente usuais. Uma deformação na maneira de o vetor movimentar-se, de retornar aos mesmos estados. Aqui, foram as vivências que modificaram a equação, mesmo que a estrutura herdada permita tais alterações.

Melhor pensar nestes vetores e regiões “mentais”, nesta equação, como algo dinâmico. Um eixo que se altera com as experiências e vivências do indivíduo. O próprio tempo as altera. Mas seriam alterações limitadas, até previsíveis. Haveria outras equações e funções a regular estas modificações do eixo principal. Novamente aqui, alguns indivíduos parecem “falhar” neste segundo movimento. Penso naqueles que adoeceram com a idade avançada (as demências). Quanto à curva de deslocamentos dos eixos, a circunferência não se fecharia; os estados do eixo não seriam reversíveis, ocupando na prática apenas parte da curva. Estes dois eixos abaixo bem poderiam representar duas idades extremas de um mesmo indivíduo.

Pensei neste modelo hipotético, a meu ver bastante curioso, nos tempos de recém chegado ao Ceará, há dez anos. Nunca mais o trabalhei novamente. Achei-o curioso. Fez-me pensar em ciclos próprios das possibilidades dos diferentes estados mentais. Todos sofrendo limitações defensivas. Avançar tais limites seria patológico, ou avançá-los fora de certos outros limites. Foi-me útil.

2h53min. Preciso novamente buscar sonos. Poderemos ter um dia cheio em breve.

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Zumbis I

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          Cozinho lentilhas por estas terras e mesmo assim é como se estivesse a esperar a morte. Nem as fotos lunares, nem os momentos de escrita. Não consegui tornar-me um imortal domesticado. Então acordamos com um dia a menos. O Tempo Da Morte. Interno... 
          
           Contemplar um por de sol com lentes mortais, sentir o gosto triste mas intenso do ocaso, o sempre último ocaso, saber-se de alguma forma vivo - regido pela morte e condenado a nunca poder vê-la. Sentir o quanto os dias são escorregadios e incertos... Não sei se isso é realmente viver. Mas o que um cético das cousas humanas pode fazer? 


          Não trouxe na bagagem bíblias, evangelhos, alfarrábios estúpidos de auto - ajuda e coisas do gênero. Nenhum consolo. Nem esperança. Que existam deuses e fadas, o que quer que exista está condenado à minha mesma prisão passageira. Então somos momentos. 

          Sou um  momento que agora escreve e fotografa, que convive com outros momentos, vetores (que sempre movem e não existem... Talvez sejamos quase abstrações). Mas a desgraça vem quando julgamos. A "coisa" desenrola-se diante de nós sem pedir crença ou licença. O medo me reduz a fantasia e domestica, castra. Apenas aquele "é assim". Que nenhum livro segura, nenhuma religião desvenda, crenças. 

          Um momento que cozinhou lentilhas ontem. Fato. 


          Enxergar o abismo, ter consciência deste abismo, viver-se do tempo da morte, selvagem, não, não recomendo. Tentar atingir a virtualidade deste mundo de fantasias, sentir o mundo da pele (e não de condicionamentos). Não recomendo. 

          Sou apenas um caçador de momentos e este tipo de caçador não pode alimentar-se de esperanças vazias ou fantasias. E tudo o que parece fazer algum sentido tende-me a levar mais para fora desta prisão insana. Como se a maior ânsia fosse o libertar-se de tudo isso, trazendo à tona pequenos pedaços e fragmentos de certas doutrinas antigas. Pistas soltas que me parecem claras. Pois me faz sentido o modelo de domesticação de humanos, das correntes de condicionamentos e o caminho da destruição plena que traçamos. Basta olhar como e para quê se movem as pessoas, o que fazem para não enxergar, no que resultou para a natureza nossos movimentos. Basta sentir nas músicas apreciadas em caixas estúpidas nos rabos motorizados de alguns idiotas. O tal "sonho nefasto" em que se encontram estes estranhos zumbis. Os "estatutos da humanidade" foram forjados sobre uma compreensão preconceituosa e utilitarista de nosso papel existencial neste mundo. Visões arcaicas veiculadas por religiões e um certo "senso prático". A hipertrofia de um órgão somente (entre as orelhas) que me faz questionar se todos o deveriam possuir. O problema é que vai ficando um mundo desagradável e perigoso. 


          Talvez uma questão de escolha. Pender-se para o lado da alienação, domesticar-se, simplesmente deixar de ver o que há por trás do sol. Seguir o que a quase totalidade das pessoas segue, tomar-se por humano e superior. Mas seria preciso sufocar esta náusea que ataca quando penso neste caminho. Nunca fui muito bom em suportar náuseas. 

           



          

    

          
          

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012



          Distâncias, fundamentos do exílio. Longe de lugar nenhum, apenas a distância. Pouco tempo para entender-se além desta. Estranho exílio para mutantes, estranhas cidades mortas que fervilham em caos, a presença suicida de seu povo eternamente escravo e em fuga de si. Nada a fazer. Todo "fazer" por aqui é perigoso, quebra. Aguardamos ávidos gotas de luz que raramente chegam pelas frestas nas telhas deste escuro manicômio. É quando nos volta alguma força e sentidos. Quando estamos mais próximos de casa, uma casa que não entendemos.

          Lua de fevereiro. Crescente. Sua luz nasce ao meio das vastas trevas como uma ilha, um oásis luminoso, uma parada para os olhos (de quem os tem). A nós, nunca é a mesma, é sempre a última gota de luz empurrada pelos ventos. Não poderia ser a mesma.