Novembro, 02, 03, 2009
“Não vos desejo. Nem vos amo. Sequer existes como também não existi.
Dançávamos com este corpo de sonhos que me vesti, dançávamos cada sonho, cada
pensamento e desejo, estávamos no fim e no começo de tudo o que não nasceu. Por
que vos temi por todos esses tempos”?
“Findam-se as buscas. A prisão
é virtual. Somos virtuais para além (ou aquém) das manifestações. Corpos e
sentidos, deuses e almas, nenhum sujeito escapa à virtualidade”.
Mais um daqueles dias quentes e abafados. Os
ventos começaram ao por do sol, fortes e trazendo, à noite, um cheiro de mato e
umidade. Quase frio. Acordo tarde e passo o resto do dia na horizontal.
Há pouco, tristes mensagens ao telefone (a ex
esposa): “o besta do motorista jogou fora a soja dizendo que estragou. Eu catei
uns últimos grãos que insistiram em ficar na vasilha e os comi como um cão
faminto. Gosto de terra com água de rio. Maravilhoso alimento o qual alguns
humanos não merecem comer, como esse taxista!”.
Fiquei
triste. Minhas últimas sojas pretas de Curitiba... As preparei com cuidado e
carinho. Quase as devorei, pois estavam especiais. Preferi dar a ela, estava
nesta cidade para uns plantões e pedi para um taxista deixa-las na maternidade.
Agora, sem sojas negras e meses de cão faminto.
(...) Lembro-me
de uns poucos dias de Finados. Pensar naqueles que se foram. Ou pensar naquilo
que guardamos daqueles que se foram. Nos parentes, nos animais que não estão
mais conosco, algumas vezes num aperto de saudade. Mas tentar entender um pouco
sobre a morte, quantos pensam nisso?
O que é
que morre? Primeiro, a possibilidade de interagirmos com o finado. A
possibilidade de modificarmos uma relação, atualizarmos passados, termos acesso
àquela única memória, a parte do universo condensada em recordações. Perder um
ente querido é perder um espaço próprio, íntimo, de atualizações e
possibilidades outras. Ficarão apenas referenciais, lembranças, coisas fadadas
apenas ao lembrar. Todos recordamos um pedaço da própria morte nestes dia.
Morre
também o conjunto de imagens e interpretações possíveis de uma pessoa –
relação. O foco desta estará agora direcionado a um passado que guardamos
juntos. Vai-se parte do corpo do outro, retido em mim até este dia. Vai para
onde? A morte é uma viagem sem “onde”. Apenas uma viagem. Um típico fenômeno de
transcendência de planos. É como alguém desaparecer entre quatro paredes,
diante de nossos olhos, deixando apenas uma roupagem inacabada. Aquela roupa
que fica não é o que partiu. E nunca o foi. A morte de outrem deixa-nos
completamente sem ação diante de um vazio que nunca havíamos percebido antes.
Cercávamos aquele espaço com imagens variadas, relacionadas com outras regiões,
não era um canto autêntico, mas preenchido por coisas de outros cantos. Agora
vemos ali o vazio, algo parecido com um nada, incômodo, sombrio. Um “para antes
do nascimento”, ou “antes dos tempos”. Um retorno? Sim, um retorno ao
não-nascido, não-criado. Apenas aquela porta diante do nada que nos resta.
Mas é
esta porta tudo o que nos resta. Um minúsculo e perdido, quase sempre oculto,
espaço vazio. Num quarto abarrotado de ilusões estúpidas, criadas pelo medo e
pelos condicionamentos. O que cerca esta porta vazia é o que acumulamos dentro
da casa pelo mais puro desespero, seguindo os padrões de cegueira herdados nas
palavras dos vivos. Aproximações de lugares assim, vazios, incertos, escuros
porque não atingidos por nossa consciência, sempre aterroriza. Porque ameaçam
estes espaços nossas construções ilusórias de vida. Mostra-nos que também não
estamos vivos. Que alucinamos em ignorância e desespero, que agonizamos
alucinando. O vazio denso que transpassa aquela minúscula porta mostra-nos a
pequenez daquilo que chamamos de “nossas vidas”. Que estamos numa gaiola de
condicionamentos, que nossa casa incendeia-se dia a dia. Por nossos olhos não
estarem acostumados á luz, enxergamos as trevas para além da porta. Da porta de
nossa gaiola. Da nossa antiga e penosa cela. E nos voltamos, aterrorizados, aos
recantos poluídos da casa, aos recantos densos e inúteis, implorando a
misericórdia de mais um ano de ilusões. É o que deve enxergar a larva quando
espia por um pequenino buraco em seu casulo. A luz fere e cega quem vive
distante e oculto da luz. Sim, estamos mortos, apenas ainda presos à armadura
de pele e ossos, configurando nossas mentes à semelhança desta armadura.
Não
podemos ter medo daquilo que desconhecemos. O medo da morte é impossível.
Tememos as construções com que cercamos a porta. Tememos as imagens e
representações que tomamos por “morte”. Tememos a lembrança da dor e da
solidão. Do desprendimento, do abandono de nossos desejos e prazeres. Tentamos
construir algo sólido com a mesma areia que cerca a praia, tomando-a pelo mais
resistente concreto. Basta a próxima onda.
A morte,
como a concebemos, representa o findar. O que é que finda com a morte? Um corpo
ávido de reconstruções, um corpo de desejos, um sonho de imortalidade. Sim, os
sonhos são mortais. E os corpos são sonhos mais densos, os sonhos de onde
acreditamos sentir. O sonho de onde vivemos. Apossamo-nos de nossos corpos e
dali pensamos estar vivendo, sentindo, pendurados num tempo e num espaço que o
transcendem e o justificam. Temos tudo o que os outros sonhadores dizem e
constroem para nos amparar. Temos a ciência, temos as religiões, as filosofias,
mas não temos a vida. Porque ela pode estar atrás daquela porta terrível.
O corpo
não sou eu, mas a região onde instalei meu aparato “percepcional”. De onde
imagino que posso ser algo distinto do universo, uma entidade. A região onde
surge o esquecimento de minha pertinência ao todo. E chamo de “deus” este todo
para que não o veja, para que encarne mais uma configuração ilusória a
amparar-me no triste sonho da matéria. Sim, o universo também sonha e se
complica quando mergulhado em trevas . Transcendo este meio puramente material
e percebo um meio simbólico, psíquico, fenomênico... Então me descubro ocupando
outros corpos para estes meios.
Sim,
contemplamos o dia de Finados de dentro de uma estranha prisão, cuja única
porta abre-se para dentro. E dela parece exalar o vazio, o nada, o fim. Como um
pássaro que, após anos na gaiola, se torna indiferente à porta quando esta
subitamente se abre. Ou como uma borboleta que, aterrorizada, desiste de sair
do antigo casulo. O que chamamos vida é um tempo. Um tempo necessário para que
as paredes do casulo se enfraqueçam, não possa mais conter as asas. Os finados
estavam vivos, estavam larvas no casulo, presos e oprimidos naquele momento. No
voo, algo sobe aos ventos e a velha casca volta à terra. Deixa de ser um pó
organizado por um desejo e volta à terra. Pois dela foi tirada. O que sai, quando
não aborta, não pode mais ser visto pelos que ainda rastejam na terra. Não
pertence mais a estas dimensões alcançadas por nossos sentidos. Seus novos
corpos serão formados pelo vento. Serão o vento, livre de sua existência,
sopro.
Não
ouso pensar em como seria o mundo além da pequena porta escura. Porque
certamente não será um mundo para pensamentos.
Pensá-lo seria recriá-lo com novas ilusões, configurando-se outra
espécie de cela, de casulo. E quantos casulos ainda teremos?
*
* *
Antes de meter-me no grande circo dos
ateus e religiosos, devo lembrar que vejo as coisas daqui de baixo, de uma
ínfima partícula densa de sonhos e sofrimento. Devo lembrar também que ainda
não construímos o universo, o mundo que nos cerca, nem o interpretamos ou
significamos. Nós o sonhamos. Porque interpretar é estar livre de antigas
interpretações condicionadas. E a construção resulta em uma coisa com a qual
não nos confundimos. Separamo-nos de nossas construções, mas não de nossos
sonhos. Sonhos aprisionam, excluem, cegam. Sonhos prendem, têm peso. Sofremos
um longo e penoso processo para chegarmos até os sonhos. Daí ser também longo e
penoso o processo de nos colocarmos num ponto onde não mais nos confundimos com
estes sonos. É o que chamo de senda. O caminho da morte dos
sonhos. Pois quando saímos de um sonho, simplesmente acordamos.
* * *
3h de
03.10.09. um dia cheio pela frente.. Preciso buscar meus sonhos num plano
estritamente horizontal.
* * *