quarta-feira, 18 de julho de 2012

Tempos de Abandono



          Ventos fortes esta noite, o mesmo silêncio de ventos e ondas. Semana "sugada", estupidamente rápida, nenhum tempo para pensar. A solidão atingiu níveis alarmantes na semana passada por aqui. Sem meus anestésicos tintos secos desde sábado. Sensação de que o mundo  silenciosamente conspira, trama, preparando-se na surdina para fazer-se em pedaços. 

          Algo faltando na "alma". A prisão destes palcos abafantes diante de uma percepção incompleta, algo roubado ao chão. Simplesmente a falta de Presença. Os dias estão quentes e abafados como estes cenários, a clareza inóspita que cega (de um sol que não conhecia). Mas tudo sem a "autopiedade" dos noutros tempos. Nenhuma fuga impulsiva, afetiva, apenas estar aqui com (e sem) o que se pode agora. 

          Trechos obscuros do (des-)caminho. Densos mares sem ventos. Estranha nau de velames parados, mas sem estagnação estranhamente. Há uma tensão calada que não é silêncio, precisava de alguma sobriedade para escutar estes tempos. 

          Não irei agora cair na tentação de achar que tudo isso foi somente em vão. Que todo este simulacro de busca foi apenas o caminho passando, carregando as sandálias para a morte. Prefiro enxergar o abismo que rasteja em cada passo, que sempre rastejou próximo. Ao menos concentra. 

          Tempos de Abandono. O "corpo afetivo" o sentia, sofreu intensamente isso por uns poucos dias, não conseguiu perceber no momento. É como se surgisse agora um tédio cansativo, o descaso deste corpo diante do momento, algo que surge depois da dor. Mais fácil perceber agora, o "corpo" deixa de lutar, exaurido, ferido, começa a simplesmente deitar diante do inevitável fim. Esta metáfora me seduz agora. Tempo de abandono. O "corpo" que sofreu o abandono é traduzido, observado, colocado no lugar de ações.

          Abandonar o caminho, o navio, as sandálias. Chegamos em um ponto onde podemos sentir, enxergar todo o trajeto percorrido, toda a ilusão de caminho. Andávamos em voltas, sempre em voltas, em direção ao abismo - mas todos os andares são em voltas e sobre abismos. Parte da coisa, do processo. Normal que chegássemos a perceber a inutilidade sagrada disso. Há que se andar em voltas e voltas, há que beirar-se precipícios... E  sorte de chegarmos a esta percepção. Caminhos são curvos neste plano.

          E?



          O "Krishnamurtismo" nos torna, após algum tempo de leituras, céticos "trancados". Vamos nos libertando de nossas crenças estúpidas, nossos "ismos", vamos englobando aos poucos este ateísmo diante do que é criado pelo homem (em seu próprio benefício). Por um lado, vamos desconstruindo toda uma estrutura imposta e cobrada pela sociedade, passamos a enxergar o que move este processo insano e brutal de "civilização", seus porquês, seus verdadeiros objetivos. Mas isso ocorre no tempo, e o tempo é o alimento do ego. Então tudo não passou de uma troca de egos, de prisões. Construímos um Krishnamurti à imagem e semelhança de nossas idiossincrasias mais íntimas - diria que fabricamos agora outro ego e o colocamos no lugar do antigo. Exatamente porque tudo isso foi no tempo. Pensamento. E o chamamos de "Krishnamurti". Teremos agora nossa versão patenteada de "Krishnamurti" para arrastarmos por toda a vida, ainda andando em círculos. Uma nova prisão. Bem mais confortável que a antiga (confesso que sou grato a ela por ter me permitido suportar tudo isso até agora e chegar aqui quase ileso). Mas uma prisão (em cujo pátio circular podemos passear ao sol por um pouco mais de tempo que antes, até voltarmos às nossas celas escuras). 

          A imensa maioria dos poucos que ouviram o canto da liberdade morreu aqui. Parou por aqui. Segue arrastando suas correntes mais leves, suportáveis, mas ainda aqui, circular, prisão. Quando o velho K. exclamava impaciente às multidões "Por que você não muda?", talvez esperasse a única resposta coerente: "porque agora somos você"... Sim, haviam caído na poderosa e sutil armadilha da identificação. Em verdade, apenas uma troca de identificações. Não sei se uns poucos desta turma atravessaram este penoso estágio. Se viveram para perceber o próprio "corpo afetivo" descer de vez com sua crítica mortal, seu tédio de abandono. Alguns voltaram às suas antigas prisões, revoltados, porque o Mestre não os presenteou com certas asneiras que chamavam de "iluminação". Porque toda "iluminação" que é dada não passa de uma asneira. Como o gran finalle do movimento Hippie: Largar as bandeirinhas e voltar aos escritórios... É, somos assim. Isso é humano e devemos continuar sendo.

           Precisamos mudar radicalmente - e é para isso que não nascemos. 

           Sobrou-nos então isso a que chamamos de "Krishnamurti", à nossa imagem e semelhança. Que temos como "o sagrado", a religião que seguíamos escondidos de nós mesmos. Penso que só nos libertaremos quando matarmos nosso K. - e se não o matarmos, morremos (com a derradeira morte, sem encontrá-la ainda em vida). Sim, é humano sempre se ter que matar algo para um "despertar". Que seja então algo esplêndido como Krishnamurti. 

          Tempos de abandono. De perceber-se neste caminho em vão que nós escolhemos, saber da necessidade deste caminho atrelada à necessidade desta percepção. E bem aqui neste palco de abandono interno e externo. Onde muitos se deprimiriam, enlouqueceriam até, se não fugissem. Perceber também que até agora andamos fugindo (caminhos circulares são sempre fugas). Que narcotizamos muitas vezes outros momentos semelhantes e tão necessários quanto este (mas os tornamos vãos, fugindo). E também entendermos que estas fugas podem ter evitado coisas piores - teríamos estruturas para nos mantermos ilesos diante do "tempo triste sem fugas"? Então não resta nada a criticar, nenhum arrependimento, ressentimento por nossos atos anteriores diante disso. Vejo esta "tristeza" (ou este "tédio existencial") como uma nova chance de encontrar o abandono. A hora, talvez, de tirar as sandálias e os caminhos. 







          Desconhecer a razão e a loucura incipientes, desconhecer finalmente caminhos, habitar plena e silenciosamente cada lágrima como um hóspede feito de vento e vazio... Ser o espaço do intenso, onde ele ocorre, é ser selvagem, extremamente, plenamente selvagem. 
          

2 comentários:

  1. A Lucidez é realmente uma jóia raríssima. Penso que o grande JC expressou algo assim quando falou " Largo é o caminho que conduz à perdição". Numa interpretação livre: facilmente nos perdemos nas Ilusões . Raros os que conseguem se manter lúcidos apesar de toda a dor e de todos os fatores em contrário! Sem palavras para expressar este momento! :)

    ResponderExcluir
  2. ... certas sementes da alma só germinam nos infernos... fácil perder-se em busca do florescimento... Abraços!!!

    ResponderExcluir