terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Psiquiatrices III: Os Transtornos da Esvravidão


          Sempre tentei viver um certo “meio termo” em minha profissão, nenhum radicalismo extremista num mundo “cientificamente” incerto. Não acreditando em “doenças”, mas em “padrões” e “desequilíbrios”. E vendo a medicalização dos sintomas como uma violência (muitas vezes necessária) contra o que realmente somos, tanto em termos estruturais quanto em relação aos nossos embates com a vida. Medicando literalmente os que não mais se suportavam ou os que representavam, quando em “crise”, riscos a si próprios ou a terceiros. Tentando medicar sempre o mínimo possível. Na medida de um possível.

         Nossa psiquiatria jamais se fundamentou em algo que podemos chamar neste lado de mundo de “científico”. Exames (evidências) não corroboram diagnósticos psiquiátricos, antes, os excluem. Nada por aqui é palpável. Nossas práticas são baseadas em observações e experiência. Padrões de comportamento que se repetem em indivíduos, drogas de alguma forma efetivas descobertas ao acaso, enfim, nenhum fundamento biológico, nenhum fundamento patológico consistente.

          E grandes corporações apregoam uma “ciência” que justifica cada vez mais e mais a medicalização da existência, claro que em troca de dinheiro. Um sistema de classificação de doenças que tenta codificar e “patologizar” cada constelação de sentimentos que surge no embate com este velho mundo, “medicalizando-as”. Um conjunto empírico de conhecimentos tentando “biologizar-se”, obviamente porque medicar coisas biológicas rende fortunas. Como tentar interpretar um “google” pelas peças de um notebook. Tomar a manifestação pelo suporte material, a ideias pela célula cerebral, a criação por um punhado de neurônios imbecis. Não existem exames diagnósticos em psiquiatria. Porque a "mente" nunca foi um órgão, ela é um vetor condicionado que exala das estruturas em seus embates com o dia a dia. Quando esta doença começa a aparecer nos microscópios e nas sonografias, elas já materializaram, já se tornaram parte, úlceras, cânceres, enfim. A indústria "científica" existe e é preponderante na psiquiatria. Isso sempre me enojou. Ciência como indústria. Mas fazer? Estruturas psicóticas e depressivas aparecem, o mundo enlouquece dia a dia, "depressões" são criadas, cultivadas e vendidas. Sempre desconfiei de "trabalhos científicos" (patrocinados por laboratórios!).



          Apesar de todos os questionamentos as pessoas “adoecem” (desequilibram-se em diferentes níveis de profundidade, exibem os mais variados tipos de sintomas, apresentam perdas com isso). Pessoas subitamente perdem o contato com esta realidade (imposta e fabricada, adaptativa...), deixam de estudar, de trabalhar, de continuar a produzir e suportar esta e para esta vida “normal”. Prejuízos.

          Prejuízos...

         Prejuízos para uma sociedade que suga a vida de seus súditos, para famílias que exigem posturas condizentes com os ditames da escravidão, para egos que explodem por não suportarem mais sabe lá o quê. Prejuízos para uma sociedade insana, brutal, escravagista, morta.

          Compreender um simples “sintoma” implica em compreender o mundo que o permitiu e que o acolheu. Implica em perceber que tudo está interligado e desde sempre. A compreensão de um simples rebaixamento do humor ou umas súbitas palpitações pode significar a compreensão de um sistema que escraviza, abafa, destrói, condiciona, pode ser a percepção de um estado individual de escravidão. E significa também nos percebermos nele. Não tentarei compreender uma “esquizofrenia”, mas uma desordem num mundo que me envolve também, assola, me adoece.

          A medicina – não só minha psiquiatria – a medicina trata de seres que não mais se adaptam aos seus papéis. Minha úlcera me impede de retornar à fábrica e produzir a fortuna do empregador. “Readaptação”. Sou tratado para retornar às fábricas da vida, para continuar rendendo aos empregadores, sou tratado para continuar movendo a granja humana. Em psiquiatria, esta inadaptação é muito mais profunda.

          O dia a dia dos condicionados, dos escravos... As "doenças da escravidão", da Granja humana. Adoecemos porque o mundo não pode dar vazão a todas as nossas expressões, e este mundo estreita cada vez mais nossas expressões. Este mundo é condicionado pela dor e a servidão. Aí querem culpar os genes, os neurotransmissores e tudo o mais que esteja ao alcance. E ganham-se fortunas com isso. O escravo sempre acaba rendendo, mesmo quando protesta com a sanidade.


          Os “doentes” espalham-se por todas as áreas da clínica médica. O número de pessoas que frequentam os ambulatórios de “saúde da família” não causa inveja aos nossos serviços de psiquiatria. Nem seus desequilíbrios. Pessoas movidas a “paracetamol”, “omeprazol”, sinvastatinas, hipoglicemiantes, anti-hipertensivos, falando-se apenas das “doenças” mais comuns. Dores de cabeça crônicas, dores musculares, gastrites, diabetes, hipertensão... Ao menos aparecem em exames, são “científicos”, mesmo que não saibamos as causas reais (“idiopáticas”, “essenciais”, como chamam). São os mesmos processos refletidos em órgãos palpáveis, órgãos que também fazem a fortuna das indústrias farmacêuticas. E na verdade, a maioria dos pacientes encaminhados aos nossos serviços destas unidades já chega com uma prescrição de um ansiolítico (diazepam, bromazepam etc.). Ou fazem uso de um deles há anos. Estes pacientes também chegam aos postos em busca de um comprimido milagroso. Todos os sintomas, somáticos ou psíquicos, parecem refletir um mesmo processo. Parecem provenientes de uma mesma origem. Fabricados ou traduzidos da mesma granja humana.

          Um escravo é alguém que precisa trabalhar para viver. Que é sugado por um trabalho monótono e remunerado com um mínimo para sua sobrevivência. Sim, os empregos escasseiam. Nem todos tiveram a chance de bons estudos. Os lugares ao sol são poucos.

          “Mas a vida teve também seus momentos felizes”, dizem-lhe. Felicidade deve ser também trabalhar anos e anos para enriquecer outras pessoas, trocar mensalmente quase todo o sangue pela sobrevivência, sem tempo de mais nada, a não ser trabalhar. Ou deixar todo um planeta cada vez mais pobre, doméstico, desértico. Morto. Mas é porque o trabalho dignifica o homem (o homem que manda, que ganha com o suor de outros homens?). Claro que existe, existirá sempre um tempo livre quando não houver liberdade: Tempo para a bebida com os amigos, tempo para a televisão, para uma diversidade impressionante de anestésicos inúteis. Para as fugas. Vão-se logo os “tempos felizes” e o que fica neste vazio?



          Nascemos da dor. Mães agonizam diante de um nascimento. A primeira coisa que um rebento faz é chorar, colocar sua estrutura biológica diante do mundo para sobreviver, como num jogo. Muitos aí são ceifados. E o rebento continua a colocar suas estruturas diante de uma Natureza nada piedosa. Passará por doenças, por perigos, será sempre o jogo de suas estruturas com o universo. Adentrará então o “mundo da cultura”, será “civilizado”. Aí então apresentará ao mundo, num mesmo jogo, novamente suas estruturas (agora psíquicas). Deverá ser capaz de aprender, tolerar frustrações, deverá preferencialmente ser incapaz de surtar (esquizofrênicos não escolhem suas esquizofrenias, sucumbem ao mundo com suas estruturas).

          Escapando disso tudo – ou então enquanto escapa disso tudo – deverá suportar toda a carga de uma quase nunca saudável vida familiar. Sabemos que a maioria das famílias de humanos não apresenta lá uma carga muito salutar para seus rebentos. Falo de pais alcoólatras, instáveis emocionalmente, parentes perversos, de abusos, enfim, coisas corriqueiras nestes e noutros tempos. Espancamentos, discriminações. Ainda em paralelo, a sociedade domesticadora. Escolas, igrejas com seus pecados, a competição injusta por um “lugar ao sol” – vagas em boas escolas e universidades. Empregos escravizantes. Surgem os “instintos” e uma nova família é envolvida neste jogo. Mais um a passar pelo mesmo corredor polonês. O antigo e inocente rebento de nossa historinha agora trará a este mundo nada insano e brutal mais outro rebento.

          Tudo no seio de uma sociedade abençoada e sagrada.

          Então o nosso rebento teve sorte. Aquela famosa praga de aniversário: “(...) muitas felicidades, muito anos de vida”! Isso de “muitos anos de vida” acaba dando certo... E nosso personagem envelhece, surgem as dores no corpo, o vigor físico vai-se aos poucos. Mais doenças, mais um jogo das estruturas (agora decadentes) com o Universo. Então nosso personagem sobrevivente começa a perder aos poucos as pessoas queridas, primeiro os avós, depois os pais e os tios, os irmãos mais velhos, os amigos mais doentes ou velhos... Se tiver sorte. Com mais sorte ainda poderá terminar seus dias numa cama, cada vez mais sem noção do mundo que o cerca, dando trabalho aos entes queridos mais novos que o cercam (e que seguem o mesmo caminho, caso tenham também sorte).



          Há algo de errado com nossos diagnósticos e ao que desejamos “readaptar” nossos pacientes.  “Reabilitar” à escravidão, a uma sociedade que cobra o nosso sangue e a nossa sanidade dia a dia, que impões valores e ideais extremamente egocêntricos e rentáveis. Seguir este caminho é adoecer. Corpos e mentes não suportam por muito tempo a alienação, por mais “adaptáveis” que pareçam. Então eu não posso falar de “cura” quando o próprio meio adoece. Eu posso falar de paliativos, de alívios temporários, de “remédios”. E disfarço isso com duzentos, trezentos transtornos psiquiátricos diferentes, milhares de códigos de classificação. E isso tudo torna-se muito rentável àquela categoria mais bem paga de escravos. 

          Numa "depressão" a primeira coisa que perdemos é o "sentido". Ao lado do ânimo que se esvai - ânimo para continuar "produzindo", exercer um papel condicionado que se arrasta há anos e nos "adapta" a isso tudo. Não há mais energia para continuar. O peso de nosso teatro torna-se insuportável. Dos nossos afetos. Mas vão-se os sentidos. Sim, aqueles sentidos que construímos com o que nos foi imposto pela civilização, pela família, por sonhos.   Vão-se os disfarces. Perceber que tudo o que vínhamos construindo e esperando nada significa diante de uma realidade maior que ameaça despontar. "Louco é o viajante que constrói casas no caminho" (Provérbio árabe). Chamam  isso de "F32" (ou F33 se não for o primeiro episódio), "Transtorno Depressivo", no Código Internacional de Doenças. Transtorno? Talvez um "Transtorno de Protesto Existencial", seguindo o estilo dos classificadores. Chegamos a um ponto onde questionamos os sentidos impostos e percebemos a imensa desgraça desta resma inútil de papéis existenciais agregados e condicionados. Algo em nós rejeita a escravidão e a luta insana de nossas estruturas com esta máquina. Eis um ponto que, de certa forma, representa lucidez. Aquela lucidez vivida com todos os sentidos e aparada no corpo com toda a força. Então sucumbimos. E boa parte continuará a sucumbir a este processo por toda a vida. 

          


6 comentários:

  1. "Transtorno de protesto existencial"...gostei disso!

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  2. O ser humano não nasceu pra viver em todo esse regime de pressões. Exigencias, padrões, referencias, comparações. Acredito que essa "energia psiquica" insuportavel ao longo do tempo vem aumentando e produz cada vez mais "medicados" - isso tudo vai cobrar um preço obvio , no corpo e/ou na psiqué. Ainda creio na unica saída possivel: sair desse sistema, construir sociedades em ecovilas, pequenas, familiares. Otimo artigo, parabéns !

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    1. O ser humano surgiu no seio de uma espécie criada para a servidão. Deixar a escravidão é contra a corrente. Não interessa ao sistema perder suas células, seus serviçais. A humanidade nasceu "antinatural", seu equilíbrio é a desordem. Primeiro preciso acordar de mim e de toda a humanidade que sonha em mim. Deixar de ser humano. Numa ecovila entre pessoas conscientes seria muito mais fácil Mas é daqui deste inferno que me cerca que devo acordar, meu relativo isolamento me ajuda um bocado. Tento jogar com a comida. Obrigado, Dalsan, pela ideia deste escrito.

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  3. Olá amigo Lobo... você demonstrou em detalhes o que Buda já dizia há mais de dois mil anos: viver é estar sujeito à dor. E não creio ecovilas irá resolver alguma coisa se nelas estiverem habitando a mesma espécie de zumbis que criaram este mundo como ele é. Temos que deixar de ser Zumbis... acordar deste pesadelo e, quem sabe, se libertar! Fraterabraços amigo!

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    1. Bem... Cada vez mais acredito que este "temos" vem se restringindo... Quem sobra???Grandes abraços!!!

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