sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Finados, 2009,,,

Novembro, 02, 03, 2009                                          
                                                                                                               

“Não vos desejo. Nem vos amo. Sequer existes como também não existi. Dançávamos com este corpo de sonhos que me vesti, dançávamos cada sonho, cada pensamento e desejo, estávamos no fim e no começo de tudo o que não nasceu. Por que vos temi por todos esses tempos”?

“Findam-se as buscas. A prisão é virtual. Somos virtuais para além (ou aquém) das manifestações. Corpos e sentidos, deuses e almas, nenhum sujeito escapa à virtualidade”.


 Mais um daqueles dias quentes e abafados. Os ventos começaram ao por do sol, fortes e trazendo, à noite, um cheiro de mato e umidade. Quase frio. Acordo tarde e passo o resto do dia  na horizontal.

 Há pouco, tristes mensagens ao telefone (a ex esposa): “o besta do motorista jogou fora a soja dizendo que estragou. Eu catei uns últimos grãos que insistiram em ficar na vasilha e os comi como um cão faminto. Gosto de terra com água de rio. Maravilhoso alimento o qual alguns humanos não merecem comer, como esse taxista!”.
Fiquei triste. Minhas últimas sojas pretas de Curitiba... As preparei com cuidado e carinho. Quase as devorei, pois estavam especiais. Preferi dar a ela, estava nesta cidade para uns plantões e pedi para um taxista deixa-las na maternidade. Agora, sem sojas negras e meses de cão faminto.
                                                                                      
(...) Lembro-me de uns poucos dias de Finados. Pensar naqueles que se foram. Ou pensar naquilo que guardamos daqueles que se foram. Nos parentes, nos animais que não estão mais conosco, algumas vezes num aperto de saudade. Mas tentar entender um pouco sobre a morte, quantos pensam nisso?
O que é que morre? Primeiro, a possibilidade de interagirmos com o finado. A possibilidade de modificarmos uma relação, atualizarmos passados, termos acesso àquela única memória, a parte do universo condensada em recordações. Perder um ente querido é perder um espaço próprio, íntimo, de atualizações e possibilidades outras. Ficarão apenas referenciais, lembranças, coisas fadadas apenas ao lembrar. Todos recordamos um pedaço da própria morte nestes dia.

                                                                       


Morre também o conjunto de imagens e interpretações possíveis de uma pessoa – relação. O foco desta estará agora direcionado a um passado que guardamos juntos. Vai-se parte do corpo do outro, retido em mim até este dia. Vai para onde? A morte é uma viagem sem “onde”. Apenas uma viagem. Um típico fenômeno de transcendência de planos. É como alguém desaparecer entre quatro paredes, diante de nossos olhos, deixando apenas uma roupagem inacabada. Aquela roupa que fica não é o que partiu. E nunca o foi. A morte de outrem deixa-nos completamente sem ação diante de um vazio que nunca havíamos percebido antes. Cercávamos aquele espaço com imagens variadas, relacionadas com outras regiões, não era um canto autêntico, mas preenchido por coisas de outros cantos. Agora vemos ali o vazio, algo parecido com um nada, incômodo, sombrio. Um “para antes do nascimento”, ou “antes dos tempos”. Um retorno? Sim, um retorno ao não-nascido, não-criado. Apenas aquela porta diante do nada que nos resta.

Mas é esta porta tudo o que nos resta. Um minúsculo e perdido, quase sempre oculto, espaço vazio. Num quarto abarrotado de ilusões estúpidas, criadas pelo medo e pelos condicionamentos. O que cerca esta porta vazia é o que acumulamos dentro da casa pelo mais puro desespero, seguindo os padrões de cegueira herdados nas palavras dos vivos. Aproximações de lugares assim, vazios, incertos, escuros porque não atingidos por nossa consciência, sempre aterroriza. Porque ameaçam estes espaços nossas construções ilusórias de vida. Mostra-nos que também não estamos vivos. Que alucinamos em ignorância e desespero, que agonizamos alucinando. O vazio denso que transpassa aquela minúscula porta mostra-nos a pequenez daquilo que chamamos de “nossas vidas”. Que estamos numa gaiola de condicionamentos, que nossa casa incendeia-se dia a dia. Por nossos olhos não estarem acostumados á luz, enxergamos as trevas para além da porta. Da porta de nossa gaiola. Da nossa antiga e penosa cela. E nos voltamos, aterrorizados, aos recantos poluídos da casa, aos recantos densos e inúteis, implorando a misericórdia de mais um ano de ilusões. É o que deve enxergar a larva quando espia por um pequenino buraco em seu casulo. A luz fere e cega quem vive distante e oculto da luz. Sim, estamos mortos, apenas ainda presos à armadura de pele e ossos, configurando nossas mentes à semelhança desta armadura.

                                                                         


Não podemos ter medo daquilo que desconhecemos. O medo da morte é impossível. Tememos as construções com que cercamos a porta. Tememos as imagens e representações que tomamos por “morte”. Tememos a lembrança da dor e da solidão. Do desprendimento, do abandono de nossos desejos e prazeres. Tentamos construir algo sólido com a mesma areia que cerca a praia, tomando-a pelo mais resistente concreto. Basta a próxima onda.

A morte, como a concebemos, representa o findar. O que é que finda com a morte? Um corpo ávido de reconstruções, um corpo de desejos, um sonho de imortalidade. Sim, os sonhos são mortais. E os corpos são sonhos mais densos, os sonhos de onde acreditamos sentir. O sonho de onde vivemos. Apossamo-nos de nossos corpos e dali pensamos estar vivendo, sentindo, pendurados num tempo e num espaço que o transcendem e o justificam. Temos tudo o que os outros sonhadores dizem e constroem para nos amparar. Temos a ciência, temos as religiões, as filosofias, mas não temos a vida. Porque ela pode estar atrás daquela porta terrível.

O corpo não sou eu, mas a região onde instalei meu aparato “percepcional”. De onde imagino que posso ser algo distinto do universo, uma entidade. A região onde surge o esquecimento de minha pertinência ao todo. E chamo de “deus” este todo para que não o veja, para que encarne mais uma configuração ilusória a amparar-me no triste sonho da matéria. Sim, o universo também sonha e se complica quando mergulhado em trevas . Transcendo este meio puramente material e percebo um meio simbólico, psíquico, fenomênico... Então me descubro ocupando outros corpos para estes meios.

Sim, contemplamos o dia de Finados de dentro de uma estranha prisão, cuja única porta abre-se para dentro. E dela parece exalar o vazio, o nada, o fim. Como um pássaro que, após anos na gaiola, se torna indiferente à porta quando esta subitamente se abre. Ou como uma borboleta que, aterrorizada, desiste de sair do antigo casulo. O que chamamos vida é um tempo. Um tempo necessário para que as paredes do casulo se enfraqueçam, não possa mais conter as asas. Os finados estavam vivos, estavam larvas no casulo, presos e oprimidos naquele momento. No voo, algo sobe aos ventos e a velha casca volta à terra. Deixa de ser um pó organizado por um desejo e volta à terra. Pois dela foi tirada. O que sai, quando não aborta, não pode mais ser visto pelos que ainda rastejam na terra. Não pertence mais a estas dimensões alcançadas por nossos sentidos. Seus novos corpos serão formados pelo vento. Serão o vento, livre de sua existência, sopro.

                                                                               


Não ouso pensar em como seria o mundo além da pequena porta escura. Porque certamente não será um mundo para pensamentos.  Pensá-lo seria recriá-lo com novas ilusões, configurando-se outra espécie de cela, de casulo. E quantos casulos ainda teremos?
                                                                      * * *
Antes de meter-me no grande circo dos ateus e religiosos, devo lembrar que vejo as coisas daqui de baixo, de uma ínfima partícula densa de sonhos e sofrimento. Devo lembrar também que ainda não construímos o universo, o mundo que nos cerca, nem o interpretamos ou significamos. Nós o sonhamos. Porque interpretar é estar livre de antigas interpretações condicionadas. E a construção resulta em uma coisa com a qual não nos confundimos. Separamo-nos de nossas construções, mas não de nossos sonhos. Sonhos aprisionam, excluem, cegam. Sonhos prendem, têm peso. Sofremos um longo e penoso processo para chegarmos até os sonhos. Daí ser também longo e penoso o processo de nos colocarmos num ponto onde não mais nos confundimos com estes sonos. É o que chamo de senda. O caminho da morte dos sonhos. Pois quando saímos de um sonho, simplesmente acordamos.

                                                                       * * *

3h de 03.10.09. um dia cheio pela frente.. Preciso buscar meus sonhos num plano estritamente horizontal.

                                                                                                        * * * 

2 comentários:

  1. Belo texto sobre a morte e afins. Eu penso que a consciência de morte é o que nos impulsiona para a vida. Nenhum outro animal tem essa consciência. A morte é a grande mestra. Um cheiro, S.

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  2. Eu sei que é coisa estranha de se dizer, mas foi bom ter lido algo de um desconhecido que se parece um pouco com você. Senti-me de frente a um espelho... Sentimento de estar idem.

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