terça-feira, 26 de março de 2013

Dos Labirintos


Fevereiro, 10, 2013, Domingo.

          19h44min. Há uns três anos atrás, numa viagem ao interior do Rio grande do Norte (a viagem fazia parte de um evento, o lançamento de um livro por um colega), uma noite numa pousada em Patu (nossa última parada), ligo a televisão e dou de cara com uma entrevista na TV Cultura, Umberto Eco falando sobre labirintos. Entusiasmei-me tanto que corri à pena e ao papel, tentando fotografar em letras o que se dizia. Sofregamente, escrevi:

          “Eco fala de três tipos de labirintos, o de Creta, o “residencial” e o moderno, comparando este último às estradas de ferro (pelo dinamismo, suas possibilidades). No cretense, um labirinto circular, o único problema seria passar pelo minotauro. Trata-se de uma prisão cuja eficiência não estaria fundamentada em sua estrutura interna. No segundo tipo de labirinto, baseado em caminhos binários, uma decisão errada levar-nos-ia à impossibilidade de sairmos de suas malhas. A complexidade de suas malhas residiria em sua própria estrutura. O labirinto moderno caracteriza-se pela impossibilidade de abandonarmos sua teia e pela necessidade de criarmos sempre caminhos. Infinitas possibilidades em estruturas finitas. Eco fala do aspecto dinâmico das novas prisões, esta característica que o torna intransponível. Somos obrigados a criar sempre novos caminhos.
A vida moderna obrigando-nos à incansável procura de novos caminhos, de os criarmos sempre dentro de um número infinito de possibilidades. Mas sempre serão rotas pertinentes ao próprio labirinto. Mas não vemos nada de original nesta criação de caminhos, em verdade uma escolha entre infinitos trajetos presos a possibilidades estabelecidas, ‘aprisionantes’ ”.



          Não sei se captei o essencial, se foi isso mesmo o que Eco quis dizer. Parece que finalmente fomos introjetados pelo labirinto, introjetando-o e tornando-nos seus construtores. Recebemos a forma, o condicionamento, e o trabalho de nossas vidas será apenas fabricá-lo a cada movimento nosso, na ilusão de que o labirinto já se encontra construído. Ainda não pensei se existe uma relação temporal entre estas três formas de labirinto, se há uma relação cronológica com a história humana. Ou se são o mesmo labirinto visto de pontos diferentes (três aspectos da trama). Ou mesmo três estágios evolutivos diferentes numa existência.

          Nosso labirinto moderno. “Um labirinto (...) que conduza a toda parte e não leva a lugar algum” (Eco). Um labirinto dinâmico e que parece partir do âmago do observador deve ser construído pelo próprio observador, deve ser fabricado pelo seu próprio processo de estar no mundo. E com as bênçãos do conflito. Deve ter tão fluido e ilusório quanto o próprio material usado em sua construção. Por vezes modifica-se tão drasticamente num curto intervalo de tempo, mas sem perder seu “peso” e sua “estrutura” aparente. Bem à mercê das cabeçadas no escuro do observador. O primeiro e o segundo modelos de labirinto seriam estruturas independentes do sujeito submisso, como se fossem construídos por algo além deste. Não modificam no tempo ou com os passos do sujeito. Ao contrário do terceiro tipo.

          O terceiro tipo de labirinto seria então construído no tempo pelo próprio sujeito. Que material seria tão fluido e disponível para sua confecção que não o pensamento, organizado pelas entranhas de uma mente? O próprio material com que a mente foi construída – este labirinto não passaria de uma extensão desta mente e deste sujeito. Uma aranha fabrica sua teia com fluidos de seu próprio corpo, daí esta teia adaptar-se a ela, fazer parte do seu corpo de aranha.

          A cada dia acordamos num súbito momento de inconsciência que mal percebemos. Então lembramos onde fomos dormir, as nossas identidades, os nossos “objetivos” e problemas. Em segundos, refazemos toda a história de um “passado” com o qual nos identificamos. Volta-nos então aquela velha náusea querida e toda a carga de traumas que pareciam ter dormido conosco, fazer parte de nós. Mas os reconstruímos naqueles poucos segundos, como quem antes de abrir os olhos, veste a pele, as calças, as botas. Acordamos vazios, nenhum passado sólido, nenhuma dor ou náusea proveniente de um “passado”, mas vestimo-nos deles antes –de abrirmos os pobres olhos. O que é isso senão colocarmo-nos no próprio e fresquinho, recém-saído do forno, labirinto? O restante de sua construção dar-se- á ao decorrer do dia, mais pedras fictícias para estas paredes fictícias que nos aprisionam.

          O único material que conheço, fluido o bastante para "retornar-se" gigante a cada manhã, em poucos segundos, e continuar engrossando pelo dia é o pensamento. Aqueles complexos afetivos fantasmáticos com os quais aprendemos a nos identificar e pelos quais todo um estranho sistema nos escraviza.

         Sim, este labirinto começou a ser construído para nós muito antes de nosso nascimento. Chegou-nos pelos antepassados. Surgiu da relação entre a humanidade como um todo e o que a permitiu constituir-se como humanidade. Do sistema que a definiu como humanidade. Suas regras, condicionamentos, enfim. Foi-nos presenteado, não a nós, individualmente, mas à nossa espécie. Herdamos um punhado de características geneticamente transmissíveis quando vistos individualmente. Somos únicos em nossas formas e no que o mundo fará de nós pelos tempos. Mas herdamos esta forma nefasta de relação com a existência – o pensamento condicionado – de nossa relação enquanto espécie, com a existência. Fomos transformados, enquanto rebanhos, em desnorteados construtores de labirintos ilusórios, aranhas cegas e psicóticas. 

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