segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

05.07.2088


(Te-diarium Inexistencialista: 05/07/08)

Mais vontades de escrever. Talvez o sake, ou a preguiça de sair à caça mais uma vez... Preferi ficar em casa, sem pensar em quase nada que pode estar acontecendo lá fora nos bares. Talvez precise de mim hoje aqui. Talvez os teclados precisem. Não sei. Ainda vou pensar.

Estive até a pouco tentando jantar carbonos no esquina. Uma cachorra branca e com manchas pardas claras, focinho comprido e um olhar expressivo, humano, seguiu-me até a mesa. Pedi uma carne mal passada para comermos juntos. E cervejas. A pequenina deitou-se ao lado e, após alguns carinhos, começou a dormir. Chegando a comida, não fez questão de nenhum pedaço. Queria apenas a minha presença, os afagos. Ficamos ali um tempo. Um pedinte acabou levando o jantar já embalado para viagem (iria colocar nas lentilhas que agora cozinho). Quando fui embora, seguiu-me até o moto taxi, correndo pela rua quando partimos. Não sei onde parou. Cortou-me o peito e minha vontade foi trazê-la comigo. O farei quando alugar uma casa que tenha ao menos um quintal.

Passei a quase entender esses assédios que certos animais nos presenteiam. Ao menos, respeito. Um respeito com profundas razões místicas, creio. Penso numa gata mourisca que me acompanhava em Canindé, quando lá trabalhei por dois anos (morava na capital e dormia lá por dois dias). Atendia comigo, subia na mesa, ia para alguns pacientes, mas sempre ao meu lado. Quando saí de lá, ela não viveu três meses. Não a levei porque o local era amplo, com um pequeno açude e muita mata ao redor. Ela deixou de comer e morreu. Não estava doente.
A água das lentilhas quase seca. Três folhas de louro e baixamos o fogo. A vontade de sair assalta-nos em pedaços, forte às vezes. O sake, Tozan (o mais ordinário e barato), vem a calhar agora.

Quarenta e um anos em março. Uma separação bem merecida logo depois. Muitos noivados, nada de filhos. Vida de errante, até diria. Sem planos, princípios, sem sonhos. Não recomendo, mas não a trocaria por outra. Em uma pequena e estranha casa de três cômodos e sem quintal, num interior, ainda alugada... Um carro que não uso, nenhuma reserva em conta, alguns saques na geladeira e 5 pacotinhos de kumbu, a quem isso poderia despertar inveja? Quem poderia pensar em “realização”? Entretanto, existo assim, e penso em realização. Nada tenho do que se poderia chamar de bens, não juntei nada destes 14 anos de profissão, inexisto assim. Sinto estar num caminho certo, na estrada certa. Não posso criticar os caminhos mais convencionais, os que decidiram (?) por família, filhos, bens... Ate poderia ter caído nisso. Mas não suportaria. Prefiro minhas angustias atuais, as que me assolam agora.

Formei-me em medicina em 1994, em Natal, sem nenhum sonho e com um bemprego garantido num interior de 3000 habitantes. Passei a querer (?) medicina uns seis meses antes do novo vestibular (estava há dois anos e meio em engenharia elétrica). Minha mãe já intuía este encontro. As mães quase sempre têm razão. Por outras cargas d’água vim parar no Ceara, um ano depois de largar a vida militar. Uma namorada que conhecera nos tempos de caserna convidou-me para uma jornada de psiquiatria em Fortaleza. Distribuiu meu pobre currículo de clinico em vários hospitais. Acabaram me chamando em dois. Fui perdendo dois terços do que ganhava, mas o impulso era maior. “Rumo das venta”. A coisa quase não deu certo. Devo estar no Ceara há uns nove anos. Três aqui em Quixadá. Francamente, não quero ir embora para outra vida. Assim, pareço me agüentar.

As lentilhas estão prontas, algo salgadas. Sem carne. Merecem um arroz branco sem sal. Não resisto e coloco alguns pedaços de kumbu, aquelas algas que combinam mais com o azuki. Não deve meu desjejum de amanha ficar tão intragável.

Minha Basteth faz falta agora. Talvez gostasse de lentilhas. Perguntas que ainda estão no ar, o quarto vazio, suas fotos no computador, a culpa por tê-la soltado naquela manhã. Estaria aqui agora? Seus olhos na fotografia buscam os meus, mas é como se estivessem distantes. Longe. Ouço a quinta faixa de “O Mapa”, do Uakti. Na primeira vez que o fiz, ainda era estudante, era em um bolachão. Lembro-me de uma angustia que me assaltou inesperada, profunda e cortante: a imagem pura da morte. Abri então não lembro que livro e deparo-me com uma estampa antiga, a imagem de uma alma pálida e feminina (como devem ser as almas) sendo levada às terras da morte, na barca de Caronte. O que parecia ruínas de uma cidade despontava no horizonte distante e marrom. Não sei que livro era este, onde deve estar agora. Passei mais de uma semana em algo que posso comparar a depressão. Isso passou a se repetir sempre que escutava aquela musica. Bastet parece que me olha daquela outra margem do rio, daquela cidade dos mortos. Seus olhos castanhos esverdeados parecem cruzar a fronteira destes mundos e buscarem os meus. Trazem-me perguntas idiotas, sem sentido, inevitavelmente. Quanto tempo ainda tenho de vida? Como será minha morte? Pergunto isso como todos os prisioneiros condenados à morte perguntam antes da execução. Passam estes prisioneiros a vida inteira fugindo desta consciência de condenado e alguns talvez ate enlouqueçam com isso. Apegam-se com todas as fibras a coisas passageiras e fundam nisso suas sanidades. Continuam então o sistema que os escraviza, que os suga desde o nascimento até sabe-se lá quando.

Quando começamos a compreender o que são realmente os sistemas, os padrões que se repetem em seus diversos níveis, todas as coisas passam a ser diferentes. Aqueles pontos principais que, se compreendidos, revelam novas e inesperadas regiões nunca antes sonhadas pelo pensador. Chamaria de “regiões libertarias” até. Não lembro quando comecei a pensar nisso. Analisando os padrões, vemos que todos os sistemas se repetem. Basta extrapolar para outras regiões superiores. Tomo aqui a metafísica, o misticismo. E tudo cai em outro nível de compreensão, obviamente incoerente e sem sentidos, paranóide até, àqueles que dormem.

A nenhum agregado ou sistema interessa a perda de seus componentes. Mecanismos estão à disposição deste para que isso não ocorra. Isso pode ser chamado de “tendência escravizante” do sistema. Fácil observar tal propriedade. São as limitações impostas ao DNA de todas as células nucleadas, são as classes sociais de nossas sociedades, tudo aquilo que mantém coisas em seus respectivos lugares.

Todo o sistema é parte de outro sistema maior, e com outros sistemas deve integrar-se para a manutenção da estrutura geral. Tiramos daí que existem diversas qualidades de integração, algumas harmônicas, outras nem tanto. Um determinado sistema pode quebrar a harmonia de suas integrações com outros sistemas, dependendo de certas condições vigentes. Todo sistema que não consegue mais funcionar em harmonia com outros sistemas interligados, torna-se uma espécie de “sistema suicida”, ou “oncogênico”. Fatalmente será extirpado pelo restante dos sistemas, ou sucumbirá, não sem antes levar todo o restante ao desequilíbrio. Toquei-me disso quando estudante, após ler um artigo de patologia sobre neoplasias. Lembro-me do quanto isso perturbou-me quando pensei na humanidade em si. Conclui que somos uma espécie de sistema oncogênico. Meus olhares nunca mais foram os mesmos para com nossa espécie.
Creio que um pensador deve mergulhar às ultimas conseqüências naquilo em que seu espírito trabalha. Uma espécie de “ética da plena verdade”. Com o amadurecimento deste pensador, ele fatalmente será excluído de todo o restante, não comungará com o sono geral de outros pensadores (imposto pelo sistema). Um pensador deve também saber até aonde servem as verdades escritas, tidas como fundadoras ou aceitas por todos como base. Isso vale para bíblias, para tratados místicos, científicos, enfim, para tudo o que é tido como “verdade”. Sim, o preço sempre será alto.

Há uma “coisa” inteligente que mantém toda a humanidade nesta desgraça existencial que conhecemos. Somos partes ínfimas suas. Existimos ou “subexistimos” como autômatos movidos à ignorância, a sono de espírito. E assim mantemos esta podridão existencial. Somos treinados a não perceber um centímetro a mais do utilitário, do que nos mantém autômatos e mortos. E assim seguimos o caminho. “Ilusionando” uma mente e uma individualidade próprias. Como frutos de um condicionamento ordenado e proposital, inteligente, escravizante. Curioso é que os verdadeiros místicos de todos os tempos sempre estiveram à nossa frente em relação a isso. E que não há uma ponte possível entre esta nossa lógica imposta pelo sistema e o verdadeiro conhecimento. Nunca haverá. Não interessa ao sistema a libertação de nenhuma de suas partes, como dissemos. Por isso, o termo “ocultismo”. As verdades devem ser ocultas daqueles que dormem. Coisas como pérolas aos porcos.

Fomos treinados em mentiras fatais. Pensamos que somos uma espécie de gloria da criação. Acreditamos num caminho suicida e devastador, justificamos isso tudo com interpretações e adulterações de escritos sagrados. Superiores aos outros animais. Mais dignos. Portadores de alma (qual foi o papa que concedeu alma aos selvagens e aos escravos? O que isso justificou?). A própria Divindade tomou feições humanas... entretanto, a vida mostra-nos que todos os animais possuem sistemas orgânicos semelhantes; que, se uma explosão solar varresse “nossa” terra, minhocas, coelhos e humanos virariam cinzas da mesma forma. Dói entender que somos todos iguais perante a criação, não importando que apetrechos complexos assombrem tais cérebros. Que nosso “direito” à existência é idêntico ao de um rato ou um porco. Por que isso dói tanto? Como os antigos sabiam disso, os budistas daqueles tempos, os hinduístas, os chineses... O bom senso foi quebrado com os judeus, passando esta distorção aos cristãos e maometanos.

Aos poucos, liberto-me desta lógica humanóide e absurda, baseada num sistema condicionante e oncogênico. Não, não diria aos poucos. A coisa vem súbita, destruidora, como a vida. Nunca mais se é o mesmo depois de ler-se Krishnamurti, depois de mergulharmos naquilo que chamo de “metafísica” budista. São chaves que ainda existem. São marcos que direcionam o pensador para fora do caminho traçado, da lei dos senhores. Questão de escolha.

Duas e seis da manhã. As lentilhas com arroz branco e kumbu ficaram passáveis. Precisava cozinhar para mim, tomar certo cuidado. O sake desce bem. A noite continua angustiante, como são todas as noites solitárias. Penso nas amigas que poderiam estar aqui, no sexo sempre bem vindo, coisas que ainda me escravizam. Somos corpos também, corpos em transição em noites difíceis.

                                                                                                        * * *

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