segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

29, 30.10.2008


(Te-diarium Inexistencialista: 29-30/10/08)


23:57h: Quarta em seu final como minhas últimas energias do dia. A horizontal veio ontem por volta das 3:30 da madrugada, após elaborar uma aula. O sono foi mais difícil. Inquieto. Em curtos períodos. Como se uma grande e estranha energia passasse pelo corpo. O corpo sentia sua inquietante passagem. Desperto as seis e pouco. Para um dia cheio, quase quarenta pacientes, crises, o tempo de ir do ambulatório para a faculdade. O dia com uma fatia de pão de soja com bastante café. Percebi-me com uma disposição quase maníaca para as coisas. Resolvi não sair. Dormir com a cabeça para o norte?

Não sei se triste ou com remorsos. Deixei de sair com a sra. R., sua inquietação com minhas companhias atuais beiram ao ódio, isso tem sido assim nos últimos dias. Deixei de sair, deixei o chope do “Mambo” com seus sushis estranhos. Deixei de comer. Esgotar sóbrio as últimas energias do dia. E só.

Somos por demais domésticos. Pobres cães acorrentados à própria sorte, aos condicionamentos e ilusões de um submundo que escraviza e afunda. Sós, num mundo insano e brutal que criamos. Partes de um monstro suicida e perigoso que mantemos. A única beleza é aquilo que resta de selvagem nas coisas, aquilo que, por segundos, ainda não contaminamos com nosso desespero. Dói pensar-me humano.

Nenhum conhecimento contrário ao “sistema” pode sequer esboçar um sentido. Fomos condicionados a simplesmente desprezá-los, taxando-os ora de excêntricos, ora de insensatos. E são insensatos aos que servem ao “sistema”. Não seguem as diretrizes deste. A realidade, quanto mais profunda, mais fere. Como setas destruidoras, envenenadas, setas que penetram no coração e envenenam. Que podem matar o “sistema”. Falo de coisas perigosas como o saber-se um mero escravo acorrentado ao medo, o conhecimento da insanidade humana, daqueles que sofrem da “normose” (Weill). Ou da rotina suicida e brutal dos humanóides. Falo da própria impermanência das coisas e da inexistência de uma individualidade independente. Da morte de todos os deuses, da estupidez das religiões, meras “continuíces” infantis dos que desconhecem a morte. Da ignorância existencial que exala de nossa filosofia, ora utilitária, ora sensacionalista. Da grande punheta que é nossa cosmovisão.

Os antigos sabiam demais. Os pré-bramânicos, os primeiros budistas, os gnósticos. A luz sempre brilhou oculta nas cinzas do caminho. Há intenção nisso tudo, há um propósito neste “sistema” que sufoca e escraviza, há inteligência nisso. E tão ocultos a nós quanto à luz nas cinzas.

Não sinto ódio nem dó desta humanidade. Mesmo com minha cegueira e descrenças, estou onde e como deveria estar. Não escolhi isso, não há uma continuidade de escolhas que justifique o termo. Vivi a raiz desta ilusão, vivi impulsos, movimentos. Quase senti a inteligência suprema, a sensatez da Coisa, seu hálito selvagem e misterioso. Sobrevivi com o que me restava de ignorância. Nos raros momentos de profundos mergulhos, percebi um íntimo cada vez mais vazio de planos e desejos. Não formei um passado como um altar onde contemplaria estatuetas inúteis quando decrépito. Nada
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tenho para me orgulhar do que fiz ou não fiz. Os arrependimentos são falsos, inconsistentes. Cada vez mais sobrevivo sem o velho tempo. Para um dia sobreviver num “sem-espaço”. Isso não dói. Como não dói ser descrente de tudo, habitar um dos corpos de um místico cético.

Interessante saber-se tão consistente e palpável quanto um arco-íris ou uma nuvem. Saber que assim são todas as configurações que me assolam, tudo o que me faria sentir humano. Não consigo crer em fábulas, essas ilusões intencionais configuradas pelo sistema. Em minhas preces, somente imploro à Coisa mais uma dose de lucidez. Não posso negociar com deuses e anjos tão impermanentes quanto minha estupidez. Tiro destas divindades este fardo. Amo-as, como amo cada expressão que percebo da Coisa.

Deixar que as ilusões derretam-se ante o fogo daquilo que é, diluam-se na própria insensatez nesta qüididade que destrói e desbasta enquanto simplesmente acontece... isso que não tem sonhos nem objetivos, nem sentidos (daqui, de onde pensamos percebê-lo)... o Sagrado Ínfimo que representa-nos diante do todo, da Coisa...
Como poderia odiar aquilo que construí enquanto dormia? Como poderia continuar seguindo este caminho que essencialmente nunca segui?

Não veio o sono. Entretanto, algo precisa tomar a horizontal. Depois de um banho. Não sei como será o amanhã, o daqui a pouco quando o sol resolver nascer. Que monstros e fantasmas tremerão mastros e velas desta nau errante a que chamamos “dia”. Não sei. Não será certamente um “futuro”. Cansa-me viver apenas de palavras inúteis.
São 3:29h.
                                                                                      * * *

(...) Isso deve ter sido escrito há quase um ano ou pouco mais, em um final de por do sol no Skina. Acho que estava menos angustiado que o normal. Pensava nos “arquétipos” do louco e do viajante. Os dois tipos marginalizados pelo sistema. Em que diferenciariam, quais suas relações com o próprio sistema. O viajante percorrendo a senda transcendente, vivendo a impermanência. O louco, visceralmente aterrorizado com a proximidade da consciência de transcendência. Acho que foi Groff quem sugeriu ser a psicose uma experiência cósmica abortada. Isso faz sentido a partir de certo nível de compreensão, certo nível mais profundo. Algo rompe com as fronteiras usuais na psicose. Penso no doente tentando desesperadamente agarrar-se a cada caco, a cada fragmento vivo e desconectado da “realidade” perdida. A “realidade” convencional, condicionada, ilusória. Uma iluminação às avessas. Embora o mesmo padrão aqui, é impossível ao louco perceber que a falsa realidade foi fragmentada, isso por questões estruturais. O desespero e a ignorância mantêm cada caco vivo, exatamente como nos “normais”. Mas os cacos destes últimos não atingiram certa região existencial de fragmentação. O viajante não se agarra a fragmentos, nada investe neles, então os cacos não sobrevivem. Decompõem-se.

17:35h. Chega de escrever bobagens. Viajaremos ao Vale das Borboletas para uma “desasada” solenidade, com um amigo. Voltaremos ainda hoje.

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