segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

23.11.2008


(Te-diarium Inexistencialista: 23/11/08)

   “O universo não é uma idéia minha.
A minha idéia do universo é que é uma idéia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso”.
F. Pessoa, 1.10.1917

O:51, Domingo.
Dias extremamente quentes. Um belo céu lá fora, Órion a dominá-lo. Acho que foi das primeiras constelações que aprendi a reconhecer, juntamente com escorpião e o cruzeiro do sul. Foi num acampamento, tinha 11 anos e era escoteiro. No interior do Paraná. Passava muitas horas com a cabeça fora da barraca olhando os céus, “abestalhadamente” fascinado. Um hábito que nunca perdi, uma necessidade até. Milhões de céus contemplados desde então. Os tristes e apagados céus das grandes cidades, os misteriosos céus do alto-mar (quando era militar e viajava em navios). Os belos céus dos campos. Este céu que agora cobre a casa.

Calmarias estes últimos tempos. A nau segue silenciosa, uma quietude suspeita e abafada. Como se diante de um final de rota, de um período. Percebe-se algo tenso no ar, mas sutil. As palavras saem lentas e penosas apesar da vontade de escrever. Como se os sentimentos abaixo do mar escuro custassem a despontar em sua superfície. E o fizessem lenta e parcialmente. Não tenho medo destas águas estranhas, do que possa vir depois. Hoje tivemos momentos de “quase paz” à tarde. Com as crianças no ambulatório, fumando abaixo de uma árvore na faculdade, sensação de sossego. Ou quase isso. Com o despontar de um esboço de consciência diferente. Pela primeira vez, preparei estômagos bovinos (“dobradinhas”, “mondongos”). Ficaram passáveis. Terminaram para mim tais mistérios culinários.


3:27h. Lentidão incrível de palavras e muita vontade de escrever. Algo estranhamente nostálgico tenta mostrar-se por debaixo das águas (ou ainda são os efeitos das dobradinhas?). Hoje seria uma grande noite para vinhos e mulheres. Não trabalhamos amanhã, final de semana... Mas estamos aqui a escrever, sóbrios e castos. Estranhos tempos...

                                                                                                  * * *
4:07h: Uma tartaruga passeia sonolenta pelo teclado.
                                                                                                  * * *
Escrevo asneiras por aqui desde 23 de junho deste ano, casa amarela, um dia antes de perder minha Bastet. Cinco meses. Pensava em escrever por escrever. Como fotografar dias curiosos e trabalhá-los (como tento fazer com minhas fotografias). Nenhum limite à pena. Escrever. Deixar simplesmente as palavras ocuparem seus lugares. Tento deixar fora disso quaisquer críticas ou intenções “literaturescas”.  Releio estas folhas como quem passeia por um álbum fotográfico a tentar ordenar um passado que se recusa a perder-se. Ao contrário de muitos passados perdidos que tive, que deixei escorrer simplesmente. Coisas assim modificam nossas relações com a percepção do tempo, da sucessão de sentimentos e impressões que o configuram. Não sei até quando isso vai continuar, nem sei se estes escritos escaparão da lixeira. Entretanto, guardá-los exatamente como foram produzidos é uma forma de tolher quaisquer ambições ou autocensuras (disso estamos cheios).

Sim, quando fedelho, pensava em ser “escritor”. Isso me perseguiu por um bom tempo, até perceber que nada tinha a dizer aos outros. Nada de excepcional que valesse todo o trabalho e o estresse de uma primeira impressão. Em termos “artísticos” e “literários”, melhor um lugar ao colchão do que ao sol. Estes dias andam terrivelmente secos e quentes por aqui. São cinco horas, as estrelas se foram há algum tempo, há um sol nascendo ali fora, a posição horizontal faz-se agora imperiosa.

                                                                                          * * *

23:16h:  Dia entediante, um mau-humor daqueles. Saio do quarto depois das 16h. Sonhos estranhos pela tarde. Acordo com a campainha. A vizinha da frente (filha de uma paciente). Suspeitavam de uma tentativa de suicídio. Amitriptilinas, talvez mais de quarenta. Estaria sonolenta desde ontem. Descobriram muitas cartelas vazias. Chego ao quarto, ao lado de sua rede. Não me parecia alguém com quarenta amitriptilinas dentro. Os familiares pediram-me para não abordar o assunto diretamente. Conversamos um pouco sobre sua vida e perdas recentes, sobre sua religiosidade e as medicações que tinha feito uso. As medicações atuais, seus efeitos. Modificamos seu esquema terapêutico. De súbito, senta na rede e toma minha mão. Começa a chorar e revela-me que realmente pegou todas as amitriptilinas que encontrou e iria tomá-las. A pobre senhora chegou a buscar um copo de água e dirigiu-se ao banheiro do quarto. “... Então eu vi a minha mãe; olhava para mim, tão real quanto o senhor aí. Senti o copo voar longe e então cuspi fora os comprimidos. Eu a vi rindo depois.”. Falou-me então, após as lágrimas, que estava presente na morte da mãe (e anos depois, de seu pai). Vira o “espírito” de seu pai próximo ao corpo, poucos dias antes de sua morte.

Ainda conversamos um pouco sobre religião. Passei-lhe algumas idéias, coisas como a pouca importância desta vida, a impermanência e outras formas de existência após a morte. E o fato provável de sua genitora estar, de alguma forma, presente ao seu lado. Confesso que saímos mais aliviados, ela de sua tristeza, eu de meu belo humor. Parece que recobramos um pouco da lucidez nestes encontros. Pretendo visitá-la amanhã.

                                                                                 * * *

Sonhei que estava em uma sala com uma de minhas mães (irmã de meu pai, residiu conosco por um bom tempo, desde meu primeiro ano de vida; foi uma mãe para nós, preparava as refeições e era – é – uma excelente cozinheira). Havia um animal parecido com um escorpião numa das paredes. Parecia voar para outras paredes. Minha mãe pediu-me para matá-lo. Fiquei a observá-lo, adiando sua morte até que ele voou ao meu pescoço, abaixo da nuca. Lembro-me de pensar em seu veneno fatal, do medo que sentia. O escorpião fazia movimentos rápidos com suas patas e eu esperava a ferroada. Pedia para minha mãe tirá-lo dali. Nenhuma dor, apenas o medo e a apreensão. Era um grande escorpião, talvez como uma lagosta negra. Parecia-se mais com uma lagosta de antigos desenhos medievais (agora me lembro disso).
                                                                                  * * *

Depois desta visita, ainda fui avaliar pacientes no hospital. Uma já bem conhecida por suas tentativas de suicídio (traços “borderline” para complicar tudo mais ainda). Chegara de um hospital da capital após ter ingerido meio vidro de “chumbinho”. Poderia ter morrido. Sua expressão não era de forma alguma depressiva e estava bem clinicamente. Um certo “prazer” no olhar.

Seriam os estados depressivos responsáveis por este tipo de consciência “rasa” ou sem envolvimentos com a espiritualidade? Ou esta consciência facilitaria o surgimento de depressões? A religiosidade é considerada um fator de proteção contra suicídios, e venho observando isso na prática há um bom tempo. Penso que nossas religiões de “etiologia” judaico-cristã sejam “metafisicamente” pobres para um alcance maior da consciência. Focalizam sobretudo o pecado e um sistema de recompensas e punições no pós-morte. Exatamente como um bom negócio. Quase sempre ao lado do poder e das instituições. Como não progredimos nada em termos de religiosidade aqui no ocidente. Penso nos belos textos budistas e zen-bustistas, nos textos taoístas e bramanistas. Como continuamos pobres e ingênuos. A coisa foi violada em nome do poder. Basta um ligeiro estudo destas religiões.

(0:40h, 24.11.008) - Parecemos verdadeiros autômatos transitando pela vida num sono profundo. Criados em um “canteiro existencial” muito bem delimitado e preparado para este sono. Exatamente como fazemos com alguns animais para o abate. Parece haver todo um jogo de ilusões organizado sistematicamente para a manutenção deste sono. Teriam todos estes autômatos a capacidade de despertar? E o quê resultaria deste despertar para o sistema? Que outras propriedades e poderes existiriam ao alcance para além destas fronteiras? Existiriam caminhos para esta revolução?

Não poderiam existir caminhos, uma vez que todas as ações nascem de uma mente condicionada e em sono profundo. Isso foi o que os zen-budistas mostraram, o que o velho Krishnamurti tão bem frisou. “A verdade é uma terra sem caminhos”, disse.

“ . . . Sostengo que la Verdad es una Tierra sin caminos, y no es posible acercarse a ella por ningún sendero, por ninguna religión, por ninguna secta. Ése es mi punto de vista, y me adhiero a él absolutamente e incondicionalmente. La Verdad, al ser ilimitada, incondicionada, inabordable por ningún camino, no puede ser organizada; ni puede formarse organización alguna para conducir o forzar a la gente por algún sendero particular. Si desde el principio entienden eso, entonces verán lo imposible que es organizar una creencia”.

Nossa consciência, seu referencial, existe sobre certos limites bem definidos. Seus estados variam como uma função limitada, uma equação que permite pequenos deslocamentos ao redor de um eixo definido e dentro de uma região específica. Esta região poderia representar todos os possíveis estados mentais experimentados dentro desta equação. Isso funciona como uma curva delimitadora, onde estes estados possíveis seriam passíveis de um retorno em direção ao eixo. Daí a constância e certa previsibilidade de nossos estados mentais. Quando um vetor-consciência atinge um estado mental distante o suficiente do centro (eixo), o retorno aos estados anteriores torna-se impossível, alterando toda a equação inicial. Deslocariam estes estados de forma excêntrica, até imprevisível. É o que percebemos em certos “transtornos mentais”, funcionamentos e equações aberrantes, outros estados mentais impossíveis de experimentação dentro dos limites da função inicial.

Os transtornos mentais de ordem psicótica, a exemplo, deslocariam este eixo de equilíbrio, alterariam a equação irreversivelmente. Estes pacientes experimentariam estados mentais inacessíveis aos que seguem os padrões usuais, como as alucinações, os delírios e as aberrantes formas de interpretação da realidade. Pergunto: Que alterações ao esquema traria a “consciência cósmica” ou o dito “despertar”? Seria provavelmente uma alteração irreversível. Penso em algo transcendendo o simples plano tridimensional traçado acima. Não teríamos talvez equações ou funções definidas nas dimensões da “normalidade”. Penso ainda que tais estados mentais “aberrantes” trariam modificações (danos, no caso das psicoses) neuronais importantes e irreversíveis.

Poderíamos trazer em nossas estruturas possibilidades de tais deslocamentos aberrantes (os psicóticos). Mas seriam as vivências anômalas resultantes deste movimento as verdadeiras responsáveis pelos danos neurológicos ou de outra ordem? Penso que sim, pela subjetividade exibida nos pacientes com um mesmo diagnóstico. Minha “esquizofrenia” é diferente das outras esquizofrenias. Apesar do mesmo padrão (alucinações, delírios), os sintomas adquirem particularidades que dependem do meio, do sujeito, de sua cultura. Um escuta as vozes de deus. Outro, de um parente morto. Outro, ainda, convence-se de que é um profeta, um escolhido. Alguns são perseguidos por câmeras e toda uma parafernália de instrumentos de controle e observação. Um padrão, vários “recheios”. Mesmo que haja uma “falha” neurobiológica” que resulta nestas modificações, no deslocamento dos estados mentais em outros eixos anômalos, é a experiência do sujeito nestes novos estados que definirá a qualidade dos sintomas resultantes deste deslocamento. E perpetuará ou caracterizará a lesão neuronal.

Algumas situações traumáticas levam a alterações da personalidade em não psicóticos. Após determinada situação traumática, a pessoa passa a apresentar um grande aumento da ansiedade “basal”, ou sintomas depressivos que não experimentava antes. Alguns vão ao suicídio. Graficamente, a experiência traumática levaria o vetor-consciência do indivíduo a uma região bastante afastada do eixo central, o que não acarretaria a formação de outro eixo anômalo. Embora os retornos aos estados mentais anteriores e usuais sejam dificultados e outros estados sejam agora comuns. Houve uma alteração na capacidade de deslocamento do vetor aos estados e regiões anteriormente usuais. Uma deformação na maneira de o vetor movimentar-se, de retornar aos mesmos estados. Aqui, foram as vivências que modificaram a equação, mesmo que a estrutura herdada permita tais alterações.

Melhor pensar nestes vetores e regiões “mentais”, nesta equação, como algo dinâmico. Um eixo que se altera com as experiências e vivências do indivíduo. O próprio tempo as altera. Mas seriam alterações limitadas, até previsíveis. Haveria outras equações e funções a regular estas modificações do eixo principal. Novamente aqui, alguns indivíduos parecem “falhar” neste segundo movimento. Penso naqueles que adoeceram com a idade avançada (as demências). Quanto à curva de deslocamentos dos eixos, a circunferência não se fecharia; os estados do eixo não seriam reversíveis, ocupando na prática apenas parte da curva. Estes dois eixos abaixo bem poderiam representar duas idades extremas de um mesmo indivíduo.

Pensei neste modelo hipotético, a meu ver bastante curioso, nos tempos de recém chegado ao Ceará, há dez anos. Nunca mais o trabalhei novamente. Achei-o curioso. Fez-me pensar em ciclos próprios das possibilidades dos diferentes estados mentais. Todos sofrendo limitações defensivas. Avançar tais limites seria patológico, ou avançá-los fora de certos outros limites. Foi-me útil.

2h53min. Preciso novamente buscar sonos. Poderemos ter um dia cheio em breve.

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