quinta-feira, 31 de maio de 2012

Tardes.II

       
         Voltava do serviço e andava até o centro, uma boa distância. A tarde escurecendo - e isso acontece muito cedo por estas terras. O momento que mais sinto o dia, desce-me naturalmente um silêncio interno e, diante do cansaço do corpo, a "alma" vai ganhando forças. Como se acordassem os sentidos e a percepção. Posso estar no trabalho, numa caminhada de volta, num bar, a mesma sensação de mais vida e silêncio nestes momentos.

          Sempre algo a fazer quando chegasse ao fim da caminhada, um transporte para casa, ida ao banco, compras (geralmente água e um vinho), mesmo umas poucas horas no bar. Alguns pensamentos a este respeito surgiam, juntamente com outros provenientes de um dia cheio. Mas logo eram calados pela Presença do final de tarde. Por muitas vezes vivi segundos como apenas uma caminhada num findar de dia, sem sujeitos, pensamentos ou compromissos.

          Momentos cujas configurações energéticas nos tornam imediatamente presentes, colocam-nos em meditação ativa. Pontes com o pleno agora. Para alguns isso funciona ao nascer do sol. Perco-me nas tardes avançadas.

          Caminho em passos vigorosos, as botas parecem esmagar passados, futuros e pensamentos, sobe um estranhar de mundo que é quase um torpor. Nalgumas vezes a força física assume proporções inimagináveis, noutras o cansaço do dia me apresenta um suave torpor dolorido.

          Em cada migalha de chão percorrido deixava um punhado de sentidos, desejos, sonhos, um velho caminhão repleto de ilusões a derramá-las sobre uma estrada acidentada. Chegava mais leve ao final do caminho, mais vazio.

          Viciei-me nestas caminhadas desde que cheguei por estas terras, pouco mais de um ano. Talvez o momento do dia que mais espere. Muitas vezes procuro caminhos mais distantes. O andar só. Quase pleno. Quase vazio nalguns momentos. Chego em casa e a solidão (pela qual optei há pelo menos cinco anos) não chega a ser um fardo. Uma casa pequena mas distante da cidade, apenas o som do vento e das ondas, o silêncio quase perfeito, palco para suportar as dores que aparecem. Energia de uma mar e um vento que avançam, invadem os pensamentos, levam, uma casa de passagem (como a vida). Não queria estar aqui e talvez em nenhum outro lugar. Mas foi o canto onde o universo me colocou, e de onde o suporto, quieto, um portal.

          Meu dia reside há alguns poucos quilômetros daqui. A família e o coração, há milhares de quilômetros. Os poucos amigos, distantes também. Existo aqui noites comigo e com um punhado de gatas que sempre me esperam afoitas. Compartilham suas solidões felinas. E temos o vento e o estrondo das ondas próximas. Antigamente sonhava com um sítio nas montanhas e um velho jipe.

          Aos poucos desconstruo - e daqui deste estranho exílio - tudo o que me permiti acumular, me iludir. Aos poucos deixo este vento silencioso levar o que eu achava importante, sonhos, planos, egos. Como um lento despir-se diante da noite, um encontro com o que não resta. E nalguns momentos a alma explode em chamas de lucidez fora de tempo, apressada, como se não suportasse a espera mortificante destes tempos. Então procuramos as luas e a máquina, os poucos  vinhos, os escritos que escorrem como sangue. "Brinquedos" existenciais que aliviam por momentos o descompasso deste encontro.

          Excêntrico Mosteiro de ronins, ventos e ondas errantes no triste papel de mestres para almas selvagens em essência, as preces se resumem ao sagrado estrondo das ondas e ventos. A rotina é suportar-se e despir-se do mundo sem sentidos, passados, futuros, sonhos, ilusões. Não, não poderíamos caminhar com mais alguém por estas encostas sinuosas e profundas. Assim escolhi para estes "agoras". Assim fomos escolhidos.

     

         

       

       
       

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