domingo, 3 de junho de 2012

       
          22h10min, noite de domingo, 03 de junho.

           A chance de estar quase silente numa casa afastada, estranho exílio com alguma paz. Não houve um dia e nem haverá uma segunda-feira. Sensação de inexistência que invade - aquela inexistência que reporta a outras consciências. Há um corpo passageiro que digita, que passou um dia aqui dentro, enfurnado numa busca que nem é sua. Mas este corpo não estaria neste movimento agora se não fosse por outra coisa que o move. Que busca momentos de originalidade, tangentes. Sim, algo proveniente de existências virtuais.

          O exílio nasce bem aqui no cruzamento deste silencioso retiro com o ruído de uma mente que não mais se suporta. Apenas o vento e o som de algum gato preguiçoso a fazer ecos de uma máquina compulsiva e barulhenta. Extremamente compulsiva.

          Como acordar numa noite e não saber quando fomos deitar, por que dormíamos, que sono era este. Desmontando histórias com o não saber, passados, futuros. Como acordar sem solução alguma, sem direção, sem outra possibilidade que não o acordar. Algo sem definição rondando o olhar que mal desperta deste sono. Algo inevitável. Nada mais a fazer.

          Está aqui o que preciso (des-) fazer. Bem aqui, acordando comigo agora. Em nenhum outro lugar ou pensamento, apenas isso. A busca do máximo possível de lucidez. Aquele perceber que nos chega sem palavras, um sentir total. Há um silêncio agora e uma imobilidade atordoante. Há uma relação com o que vejo e o que penso neste palco de retiro. Aos poucos a "mente" vai sendo tomada por um estranhamento e um torpor.

         Meditação? A mente move-se como um pêndulo, ora atinge um estranho saber-se, ora perde-se em si. Mas há o movimento e a alteração da qualidade. A sala fica estranha com suas paredes brancas, os gatos dormem, continua o vento lá de fora.

                                                                         * * *



          Lua cheia à zênite, 22h57min.

          A vida de um "pensador compulsivo", de um desperdiçador nato de energias. Não há outra coisa a fazer senão fugir quando mergulhados nesta sobrevivência. Tínhamos a noção do quanto isso era irreal, e desde cedo. Mas nos arrastávamos sob o imenso peso da inconsciência, o fardo humano, tão irreal (mas funcionante!) quanto nós próprios. A inexistência que massacra, pois a formamos, a tornamos imensamente sólida quando buscamos os primeiros movimentos do dia. Não era algo que acordava comigo. Acordava nela, tomava-a como realidade, isso até desistir. Anos em fugas e inconsciência, ferido e ferindo, havia desistido de desistir. Simplesmente esquecido. O que mais escrever sobre o inferno?

          O inferno das fugas, o "campo das anestesias", um longo tempo de sono confuso. E talvez nem mesmo pudesse tentar abrir os olhos antes. Pelo tamanho do fardo,sua densidade. E por todo o restante do mundo que também sofre. Estávamos ligados. E a partir disso funcionávamos. Atores vendados e perdidos num palco escuro, irremediavelmente representando a própria fuga. Técnicas de plena narcose, de mover-se no sono, desgastante e perigoso improviso. Fantasmas hipnotizados acreditando numa existência forjada.

          Não culpo um mundo caótico. Nem seu andarilho cego. Existe algo nesta energia que exala da existência, existe uma densidade que parece naturalmente tolher, afundar. Uma atmosfera que entorpece profunda e naturalmente. Entra com ar que respiramos, movimenta uma série de medos e egos, permite que criemos fantasmas e nos confundamos com eles. É desta esfera, é do existir. Nascer é adentrar na escravidão. E nossas correntes e armaduras já vinham sendo preparadas há milênios. Não havia como não usá-las. Como tentar um nascimento sem dor, um parto não traumático. Mas haverá o choque do nascer e este choque é do que veio, do que nasce. Intransferível, procurando outros choques, colocando-os na malha da armadura... E arrastando o ser às vezes pelo resto de sua existência lúcida.

          Pois foi neste simulacro de existência que nascemos. Não poderia ter sido diferente, há o preço. Preço de uma escolha (ao menos biológica). Mas uma escolha. Há um processo que foge a quaisquer definições ou ciências. Acordamos ao meio de uma viagem traiçoeira e nos damos conta que isso dói. Que estamos com mãos e pés amarrados. Olhos vendados e o estar perdido num mundo incompreensível. Então vamos percebendo que isso é uma cela, uma prisão distante de qualquer paz e cuja fuga é impossível. Não há uma volta, um "adiar", exatamente como um parto. Introjetamos o pavor. Um pavor sem definição, sem objetos definidos, puros. E nossa vida passa a ser a fuga a qualquer preço deste desconforto, disso que ora surge como tristeza, angústia, ou ansiedade. Que também oscila em intensidade. Que nos suga, pois é da existência.

          O despertar. Gosto do termo. Já vínhamos percebendo que a coisa estava errada. Sentíamos por uns poucos momentos que nada disso era autêntico, real. Que "ISSO" não se encaixava em nenhum modelo, não era englobado por nenhuma resposta, que não servia a nenhuma equação. Muitos procuraram caminhos estabelecidos, práticas e crenças, muitos mergulharam profundamente em "soluções" possíveis. Traziam algo diferente (como eu), um estranho saber que adormecia. Um "divisor de águas" me apareceu, certo dia, quando finalmente li uma xérox de uma palestra de Krishnamurti (trazida pelo meu pai, ainda era um moleque perturbado). Senti imediatamente que não havia caminho. Isso ao menos me permitiu descambar loucamente por minhas fugas sem nenhum caminho. Tornei-me um fugitivo "místico ateu".

          Momentos de reflexão profunda surgiram, tive momentos bem interessantes. Mas não conseguia seguir métodos e estava fugindo. Acordava então naquele velho sono, para hibernar por anos e anos. A vida foi então resolvendo-se como podia nestes anos todos, não tinha ambição nem ideais, sentia que "a coisa" ia me atirando por escolhas, profissão, cidades, pessoas, a "coisa" parecia saber o que movimentava e para onde. Ao menos não tive o pesado fardo dos caminhos, dos sonhos e dos ideais. Da mesma forma que esta "coisa" ia jogando com minha consciência. De minha parte, continuava a penosa fuga, em busca de anestésicos.

          Não me pergunto se este momento é mais uma das poucas tréguas que a vida me tem presenteado, se amanhã voltarei a correr feito um loco, entorpecido e exausto de si, ou se manterei a consciência que me toca agora. Sinto-me preso, mas a um espaço que silenciosamente se abre. Que vai se colocando sutilmente entre minhas fugas atuais e meus anestésicos. Há uma qualidade diferente em tudo isso que me imobiliza cada vez mais, por um lado.

          O corpo agora parece leve. Como esta noite sem vinhos e pessoas. Estamos aqui escrevendo, e é só. Algo escorre das paredes e entra pelos dedos, ganha as teclas, preenche outro espaço virtual. Assim como a dor e o sofrimento são da existência - e por ela são mantidos, talvez o que me vem agora seja também da natureza. Este processo de leveza e descoberta, este estranho abrir de almas, talvez isso seja tão natural quanto o sofrimento que a inaugurou. E isso grita quando penso em nossa insignificância, em nossa absurda pequenez. Um corpo vivo, uma mente que sobrevive, um processo que desabrocha daqui deste silêncio (cada vez mais surdo). A única realidade onde posso ancorar-me, a consciência, sua direção, os movimentos que representa agora. Um corpo vivo enquanto configuração impermanente, idêntico ao que se passa na alma.

       
       

       


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