quarta-feira, 20 de junho de 2012

Krishnamurti. O Pensamento Negativo



PENSAR NEGATIVO
Krishnamurti


Anteontem estivemos falando acerca do sofrimento e esta manhã desejo falar sobre a morte. Para a maioria de nós, a morte é o fulcro do medo. Tememos a morte e, por essa razão, nunca lhe compreendemos o imenso significado. O medo, invariavelmente, deforma a percepção, faz-nos fugir àquilo que tememos; e quando fugimos do fato que é a morte ou ficamos acabrunhados de dor pela morte de um amigo, é-nos impossível aprofundar ou compreender, no seu todo, o problema da morte.
Já discorremos sobre o medo e o sofrimento e penso que devemos estar agora aptos a considerar sensata e profundamente este problema da morte. Como já salientei, o amor, o sofrimento e a morte "andam juntos", são inseparáveis. Isto não é mero conceito filosófico - não estou "fazendo filosofia". Mas, se vos investigardes com profundeza, vereis que o amor não pode ser separado do sofrimento e o sofrimento não pode desligar-se da morte, pois os três, na realidade, são um só todo. Também não há nenhuma possibilidade de se compreender a beleza e a imensidão da morte, se existe qualquer vestígio de temor.
Para compreendermos a morte, acho que devemos examinar a questão do pensar negativo e da renúncia. Porém, não tomeis isso por algo teórico, impraticável. É a mente indolente que tudo rejeita como teórico, ou o reduz a um sistema ou padrão de ação, perdendo, assim, a essência real, o significado profundo do que estou dizendo. Eis porque vos peço que escuteis de espírito aberto, amigavelmente, sem concordar nem discordar, sem nenhum motivo. Se formos capazes de escutar com calma e prazer, sem motivo algum, o problema da morte, então talvez apreendamos o pleno significado dessa coisa imensa que está à nossa espera.
Primeiramente, gostaria de considerar junto convosco isso a que se pode chamar "pensamento negativo". Bem poucos são os que pensam negativamente, e o pensar negativo é a mais elevada forma de pensamento; é ver o falso como falso, ver o que é verdadeiro no falso, e ver o que é verdadeiro na verdade. Não podemos ver o que é falso, se meramente consideramos o falso como oposto do verdadeiro; só podemos ver o que é falso quando não há nenhum contraste, nenhuma comparação. O contraste e a comparação nascem do pensar positivo. Se desejo compreender meu filho, por exemplo, tenho de desistir de comparar; devo olhá-lo assim como é. Se o considero em termos de aprovação ou reprovação - e tanto uma como outra coisa se baseiam na minha aceitação de um padrão estabelecido pela tradição, pela experiência, pela opinião, etc. - nesse caso, o chamado pensamento positivo e a chamada ação positiva me impedem a compreensão. Só podemos compreender quando não há comparação, nem julgamento, mas a simples percepção do fato real; e essa percepção é pensar negativo.
Desejaria explicar um pouco mais esse pensar negativo, porque, para percebermos sua extraordinária beleza e vitalidade, precisamos em primeiro lugar compreender o estado da mente que se acha livre do "conhecido". Cumpre escutar o que se está dizendo, não como se fosse uma exposição filosófica, ou um sistema que deveis seguir, porém escutá-lo para descobrirdes, por vós mesmo, a verdade contida na questão. Aí sentados, como estais, experimentai realmente o que se está dizendo. Não deixeis para pensar nisso posteriormente - "posteriormente" não significa nada. Para o compreenderdes tendes de vivê-lo agora, no momento presente.
Falei do "pensar negativo" e disse ser a mais elevada forma de pensamento. Nós, em geral, nunca nos achamos num estado no qual digamos "Não sei" - a não ser num sentido muito superficial. Há dois estados de "não saber". Num deles, a mente diz "Não sei", mas espera ou procura uma resposta. Nesse estado a mente traduz o que encontra conforme seu próprio fundo ou condicionamento. No escutar, peço-vos experimenteis convosco, para verdes que realmente é assim. Mas há um outro estado em que a mente diz: "Não sei", e não espera nem procura resposta nenhuma. Está ela, então, completamente vazia, seu estado é de negação total, e só para essa mente é que pode despontar aquela coisa extraordinária denominada "criação" .
Espero ter esclarecido bem os dois estados: o da mente positiva, que diz: "Não sei", mas quer saber, e o da mente que diz "não sei" e nenhuma resposta está procurando. Em regra, é-nos extremamente difícil acharmo-nos no estado de "não saber", em que não se procura resposta, porque não gostamos da incerteza. Mas a mente que tem certeza está ainda enredada no "conhecido", e é necessário estarmos completamente livres do conhecido para compreendermos o incognoscível, que é a morte. Vejamos, pois, o que se implica na negação da "vida do conhecido".
Para a maioria de nós, a vida é conflito, dor. Há luta incessante, efêmera alegria, muitas pressões e tensões, um fundo de memória acumulada que "responde" a cada desafio, e cuja resposta é sempre inadequada. Há o preenchimento e o sofrimento decorrente do não preenchimento; há avidez, inveja, cólera, ódio, angústia; há o denominado "amor", uma chama toda envolta na fumaceira do apego, da dependência, do ciúme. O tédio de ir para o emprego diariamente, a familiaridade e o desdém existentes em nossas relações, a constante "corrente subterrânea" do medo - eis a nossa vida, para a qual desejamos continuidade. Nossa vida cotidiana se tomou um hábito. Ela é superficial, vazia, e procuramos preencher esse vazio com crenças e dogmas religiosos, com santos, salvadores, mestres. Nossa vida, com seus apetites sexuais, sua ânsia de fama, seu desejo de conforto, poder, posição, prestígio - é um círculo fechado de esperança e desespero. Eis tudo o que conhecemos; e quando a morte chega, tememos deixar o "conhecido", deixar esta nossa insignificante vida, porque com ela estamos tão acostumados! Eis porque há conflito entre o viver e o morrer. As posses a que estamos apegados, nosso dinheiro, nossa casa, nossa família, nosso nome, nosso caráter, nossa experiência, nossa lembrança das coisas que fizemos e que não fizemos - tudo isso constitui o "conhecido" e, quando se aproxima a morte, temos medo de deixá-lo. Queremos a continuidade de todas as insignificâncias que conhecemos.
Ora bem. Podeis ter idéias, teorias, a respeito da reencarnação, da ressurreição, ou podeis estar apegados a alguma outra crença, mas a morte é o fim da "vida do conhecido"; e o mais importante é rejeitarmos a "vida do conhecido" - rejeitá-la sem motivo algum. Por "vida do conhecido" entendo nossa vida de mesquinhez, ciúmes, nossa ambição, nossa avidez. Temos de rejeitar totalmente essa vida, cortá-la pela raiz, mas sem haver motivo algum para fazê-lo; porque, se temos algum motivo, esse próprio motivo dá continuidade à 'vida do conhecido" e, por conseqüência, não há possibilidade de se experimentar a extraordinária profundeza da morte.
Em geral, é com amargor que chegamos ao "fim do conhecido"; chegamos ao fim de nosso cativeiro, cheios de ansiedade e medo. Não morremos felizes, calmos, belamente. A idéia da morte nos põe num estado de desespero e, por essa razão, se somos sutis, inventa-mos uma filosofia do desespero, ou recorremos à "filosofia da esperança", como o faz a maioria das pessoas chamadas religiosas. Ora, o relevante é rejeitarmos tudo isso por o termos compreendido, quer dizer, rejeitarmos, sem qualquer razão, a vida que conhecemos; e veremos, então, que nossa mente se achará num estado em que começará a libertar-se do "conhecido". Essa é uma das coisas que precisamos fazer, a fim de podermos compreender a imensidade e a potência criadora da morte.
E agora consideremos a questão do tempo. Há tempo cronológico e tempo psicológico. Não estou falando do tempo cronológico, do tempo marcado pelo badalar do sino daquela igreja. Refiro-me à terminação do tempo psicológico, e essa terminação só pode verificar-se quando a mente não está buscando, obtendo, "chegando"; compreendeu inteiramente esse "processo" e, por conseguinte, não há o amanhã como resultado das experiências de hoje.
O tempo em cujo decurso vamos para o emprego, nos dirigimos a um encontro com alguém, tomamos um ônibus, etc., é coisa completamente diferente do tempo psicológico, que formamos com a esperança; eu não sei, mas saberei; estou enraivecido, mas me encontrarei finalmente num estado de paz; sou nacionalista, estreito, fanático, mas o tempo gradualmente trará a libertação desse estado de mediocridade. O tempo, a mente o utiliza para mover-se, psicologicamente, daqui para ali. E enquanto existir em cada um de nós esse tempo psicológico, não haverá possibilidade de compreendermos o que é a morte.
Para compreender o que é a morte, a mente deve estar completamente livre do medo. Deve achar-se num estado em que diz para si própria: "Eu não sei" - e não procura nem deseja resposta alguma. Esse é o estado livre do conhecido. Significa que a mente já não busca, psicologicamente, preparar-se para, através do tempo, "vir a ser alguma coisa". Vereis, então, se aí chegardes, que toda idéia de continuidade cessa por inteiro. Morre a mente para todas as suas insignificantes ansiedades, apetites, invejas, vaidades - morre para tudo isso imediatamente, e nesse morrer nenhuma idéia existe de continuidade. Só quando há um fim, pode haver um novo começo. Com o "fim do passado", desponta algo totalmente novo.
O que chamamos "pensamento" dá à mente a idéia da continuidade - e eis o que é "tempo psicológico", porquanto todo pensamento resulta de nosso condicionamento, nossa memória, nossa experiência. Todo desafio provoca uma "resposta" desse fundo, e essa resposta é o pensamento "em ação", por conseguinte, não há espontaneidade, jamais há "resposta" que esteja livre do passado. Mas, quando tem fim o nosso pensamento, nossa avidez, nossa inveja, nossa ambição e sede de poder, toda a estrutura psicológica da sociedade, que constitui o "eu" - quando tudo isso termina, sem motivo algum, a mente se acha num estado de "não saber", completamente vazia; e só então há morte.
Que sucede, na realidade, quando morreis fisicamente? Deixais tudo para trás; nada podeis levar convosco. Não importa quantos motivos tenhais para viver, com a morte não se discute. Não podeis dizer à morte: "Ainda preciso fazer isto e aquilo, dai-me mais um mês, mais um ano". Quando a morte chega, ela lá está, absoluta, peremptória. Podeis crer na reencarnação ou noutra forma de ressurreição, no futuro, mas todas as crenças são irrelevantes ao terdes pela frente o fato da morte. E se, interiormente, morrerdes para a estrutura psicológica da sociedade, para todas as acumulações do passado, podereis ver que a morte é criação - não a criação do escritor, do músico, do pintor, do cientista, porém criação que não tem começo nem fim. E, se não estamos nesse estado de criação, que é morte, que é amor, nossa vida pouco significa.
Por conseguinte, não tomeis o que estou dizendo por uma certa filosofia lógica ou superlógica, mas penetrai realmente em vós mesmo, compreendendo-vos completamente. Negai totalmente tudo o que até agora considerastes vida - vossas experiências, vossa ambição, vossa avidez, vossa inveja - e vereis que nesse findar se encontra uma morte que é "criação atemporal" e que, se desejardes dar-lhe nome diferente, se pode chamar "Deus", o "imensurável", o "desconhecido" .
Desejais fazer perguntas sobre este assunto?

PERGUNTA: Não deveríamos guardar silêncio por alguns minutos?
KRISHNAMURTI: Os senhores não estavam em silêncio enquanto escutavam? Não se mantinham atentos, vigilantes? E quando uma pessoa está atenta, vigilante, há um silêncio de peculiar qualidade. O orador esteve explicando uma certa coisa, e embora haja falado durante quarenta minutos - se não houver errônea compreensão do que quer dizer - ele não fez uso do pensamento. Esteve a mover-se de fato para fato, servindo-se de palavras para se explicar; mas se, escutando, vos estivestes movendo apenas, por assim dizer, horizontalmente, no nível verbal, nesse caso não tereis penetrado vertical e profundamente em vós mesmos. Assim, o silêncio é um estado de atenção, um estado de real descobrimento. Não vos achais em silêncio, se vossa mente foi silenciada, ou se vos deixastes hipnotizar pelas palavras e os sentimentos do orador.
PERGUNTA: Se a compreensão não é permanente, se só se apresenta "num clarão", que acontece no intervalo entre "clarões"?
KRISHNAMURTI: É preciso compreender a natureza íntima da experiência. Para a maioria de nós a experiência é uma reação, é a "resposta" de nossa memória a um desafio. Essa memória das coisas que conhecemos pode ser antiga ou moderna, superficial ou profunda, e nós "experimentamos" de acordo com esse fundo. As novas experiências vão sendo acumuladas, armazenadas, e tornam, assim, cada vez mais forte o fundo.
Ora, quando há um "clarão de compreensão", isso não constitui nenhuma "resposta" daquele fundo. Nesse momento, o fundo se mantém em silêncio. Se ele não está em silêncio, não há compreensão, porque, então, apenas interpretais em termos do "velho" aquilo que ouvis ou vedes. O "clarão da compreensão" não é contínuo, não é permanente. A continuidade ou permanência pertence inteiramente ao fundo de experiência e conhecimento que, perpetuamente, está respondendo aos desafios. A compreensão só vem num clarão; e como surge esse clarão? Esse clarão não pode verificar-se na mente indolente, deformada, tradicional, embotada, entorpecida, nem tampouco naquela que visa ao poder, à posição, ao prestígio. O clarão da compreensão só pode ocorrer na mente alertada; e que continua alertada, mesmo quando nenhum clarão ocorre. Essa mente está sempre desperta, vigilante. Estar vigilante, sem diferenciar, observando cada movimento de pensamento e de sentimento, vendo tudo o que se passa - isso é bem mais importante do que aguardar o clarão da compreensão.
PERGUNTA: Podeis explicar melhor a questão do "ver o verdadeiro no falso"?
KRISHNAMURTI: Isso é tão simples e tão claro - há necessidade de mais explicações? Considerai qualquer coisa falsa, o nacionalismo, por exemplo. Perceber a falsidade do nacionalismo é perceber a verdade no falso. Ver o que é falso na autoridade, a falsidade da igreja, é descobrir o verdadeiro. Perceber a verdade no ciúme, na ambição, na busca de poder, de posição, de prestígio, é ver sua completa falsidade; e quando vemos esta verdade, não uma pontinha dela, porém sua totalidade, então esse próprio ver liberta a mente do falso.
PERGUNTA: Não há perigo de condenarmos certas coisas que não aprovamos?
KRISHNAMURTI: A condenação é uma reação, uma resistência, e aquilo que condenamos, evidentemente, não compreendemos. Suponhamos que eu seja católico, comunista, qualquer coisa, e, porque desejo descobrir a verdade relativa a essa questão, começo a considerá-la, a penetrá-la. Percebo então a falsidade do apego a qualquer dogma e crença e, assim, de pronto as rejeito. Essa rejeição não representa uma condenação do comunismo ou da igreja. Vejo simplesmente que essas coisas nada significam para um homem que tem o sério desejo de descobrir o que é verdadeiro.
PERGUNTA: Quando a mente está perfeitamente quieta, silenciosa, quem está consciente desse silêncio?
KRISHNAMURTI: Quando sois alegre, feliz, no momento em que vos cientificais desse estado, já não sois feliz. Já notastes isso? Não? No momento em que vos identificais com a felicidade, acabou-se a felicidade. Ela é então, apenas, uma lembrança. O silêncio não pode ser experimentado pelo "eu". Talvez examinemos esta questão quando eu voltar a falar sobre a meditação.
INTERPELANTE: Uma das causas de conflito em mim é a questão de saber o que é correto fazer.
KRISHNAMURTI: Senhor, que é compaixão? Não é um estado de simpatia, piedade, consideração? E nele, por certo, não há o sentimento de ajuda a outrem. Estou aqui ajudando a todos os que me ouvem? Espero que não. Digo-o a sério. Se tenho o sentimento de vos estar ajudando, nesse caso considero-me uma pessoa de maior saber e, desse modo, torno-vos meus seguidores. Não nos referimos a ajudar-nos uns aos outros mas, sim, procuramos descobrir o verdadeiro; e esse descobrimento exige imensa compaixão. Nesse estado de compaixão, podemos dar ajuda, dar simpatia a outro, mas não há conflito interior.
INTERPELANTE : Dissestes ser a ambição uma coisa falsa. Não percebo como pode ser assim. Se renuncio a minhas ambições, puramente materialistas, para alcançar a vossa imensurável compreensão, isso é ainda uma forma de ambição. A ambição é necessária, se desejamos "chegar a alguma parte" na vida.
KRISHNAMURTI: Tantas coisas estão envolvidas na ambição! Primeiramente, temos a autoridade - a autoridade - de um padrão que vós mesmo estabelecestes e que vos obrigais a seguir, ou a autoridade da estrutura psicológica social. Ora, autoridade supõe obediência. A estrutura psicológica da sociedade exige que sejais competidor, ambicioso, ávido, invejoso, sequioso de poder, etc. Se percebeis a falsidade de tudo isso, não deveis rejeitar - no sentido dessa palavra, conforme expliquei esta manhã - a estrutura psicológica da sociedade? Esta estrutura é que nos faz ajustar-nos, que nos torna embotados, extremamente insensatos; por conseguinte, a mente religiosa deve estar livre da estrutura psicológica da sociedade.
Ao dizerdes que um indivíduo precisa ser ambicioso para "chegar na vida a alguma parte", que significa isso? Significa lutar para alcançar alta posição, nessa confusa e miseranda sociedade em que vivemos. Mas, não é possível vivermos neste mundo sem ambição, sem alvo?
Como se estabelece um alvo? Ou o "projetais" do fundo de vosso próprio desejo, ou seguis o exemplo, venerais o êxito de outro. Assim se estabelece o alvo de cada um de nós, em conformidade com o condicionamento que nos foi imposto por determinada sociedade ou cultura. A "projeção" de um alvo decorre de nossas próprias reações, nobres ou ignóbeis.
Ora, por que necessitamos de alvo? Desejar um alvo significa que não nos contentamos com viver plenamente, dia por dia. Queremos ter o sentimento de "estar chegando a alguma parte" e, por isso, estabelecemos um objetivo, para darmos à vida uma profunda significação. Nossa vida e atividades de cada dia pouco exprimem e, assim, projetamos um ideal que pensamos lhe dará significado; mas não dá, porque o que "projetamos" nós mesmos o criamos. O importante não é termos um propósito, porém, sim, vermos se nossa existência diária encerra em si alguma significação.



7 de agosto de 1962.

Nenhum comentário:

Postar um comentário