quinta-feira, 21 de junho de 2012

Psiquiatrices II



           Quando chegava mais cedo ao emprego e no intervalo do almoço, ficava ao lado da bananeira do quintal com a máquina ao pescoço. Passamos juntos quase um ano nesta troca de contatos, dois dias por semana.            

           A pobre ninfa andava pelas folhas quando a percebi. Prendi seus momentos em várias fotografias. Seu verde quase transparente - luz - em contraste com o verde escuro da folha me seduziu. A fotografei até que, irritada, ergueu suas patas dianteiras para as lentes na célebre "posição do louva - a - deus". Então percebi que não se tratava de um gafanhoto. 




          Talvez por aqueles conturbados tempos eu ainda precisasse de algo para manter alguma dose de lucidez e calma, passar a semana toda e todos os meses recebendo a dor do outro (a dor que emerge das camadas mais profundas da alma), precisava estar silencioso para ao menos ouvir. Se tivemos numa semana cinquenta "crises" de ansiedade, se o número de crises aumentava a cada dia, apenas um psicólogo, se vinte ou mais pessoas tinham que ser ouvidas num dia, o que fazer? Nunca gostei de soluções puramente químicas. Nem sou psicoterapeuta e nem o tempo permitiria 20 ou 30 decentes sessões num dia. Fugir da demanda, eliminando-a? Pessoas sofrem em todas as cidades, "rebentam" em seus embates com a existência, tornam-se desequilíbrios ambulantes. Poucos clínicos interessam-se realmente por "saúde mental", estão também mergulhados em suas unidades, atendem.




          Ganho meu pão com isso. Essencialmente, drogas lícitas. Em sedar o que não mais se aguenta e "reparar" quimicamente estruturas que não funcionariam por si neste contexto. Só podem julgar e entender isso os que um dia já necessitaram de algum medicamento (para a vida poder andar). Ou as que precisam para o resto de suas vidas. 

          A "dor do mundo" não pode ser sanada por drogas. Mas é mais fácil a reação quando certa calma volta à mente. Quando certos sintomas desestruturantes (alucinações e delírios) são abafados. Muito menos por "bons conselhos", leituras bíblicas, textos krishnamurtianos, vídeos de Eckhart Tolle. As igrejas encontram-se tão repletas quanto os ambulatórios. 

          A senhora "X" veio pela primeira vez à consulta porque não suportava seus sintomas. As dores de cabeça, a desesperança, o humor rebaixado, a irritação aumentada aos extremos, o desespero que explodia a cabeça nalguns momentos. Mora numa casa miserável com a sua mãe e os oito filhos que veio colocando no mundo. Seu bairro, mais um dos bairros tomados pelos traficantes. Os filhos mais velhos parecem andar às noites com um pessoal esquisito. Esposo alcoólatra que já a espancou algumas vezes. Esta senhora já tentou sair desta vida ingerindo comprimidos. Vive da bolsa - família que recebe e de alguma ajuda da sua mãe, uma aposentada que toma remédios para a insônia e a pressão alta. Chega ao ambulatório. Sim, sim, deveria levantar da mesa, tomá-la pelo braço, ir primeiramente à prefeitura, expor o caso a estes senhores sensíveis e democráticos, depois levá-la à delegacia, solicitar que estes outros senhores tenham mais cuidado com aquele bairro, que prendam os traficantes... Fazer a pobre mulher citar nomes e pontos para facilitar o trabalho das forças da lei... Então levar a denúncia a um fórum, emfim. Terminaríamos a nossa jornada numa sala de assistência social do município solicitando, por exemplo, cestas básicas. Assim, tomadas as providências, tudo estaria resolvido e nenhuma receita seria despachada. Certo.




          A senhora "X" não suportava seu mundo. Este mundo. Este. Como 20 ou 30 senhoras e senhores que me visitam diariamente. E duvido que o mínimo de condições humanas e dignas de sobrevivência, o tornar esta sociedade ao menos "basal", sem fome, sem drogas ou escândalos... Duvido que isso deixasse de trazer senhores aos consultórios... Mas deveríamos partir daí, deste ponto. Aí talvez pudéssemos colocar Krishnamurtis e Tollers em nossas salas. 

          Certo médico famoso e mundialmente conhecido pela mídia disse, certa vez, numa entrevista (Brasil, TV Cultura), que todo o ato de medicar, em psiquiatria, é uma iatrogenia. Bela rima. "Iatrogenia " é o nome dado a qualquer erro decorrente da aplicação de um medicamento. Para que se faça uma afirmação dessas é necessário uma grande dose de desconhecimento, e duvido que uma universidade norte americana não administre boas lições de psiquiatria aos seus alunos. Penso em oportunismo (seres midiáticos e políticos de "nobres causas" são peritos em manipulação de realidades). Ou trauma. Sua companheira foi assassinada por um esquizofrênico paranóide (que fazia parte de sua "comunidade" de pacientes). Provavelmente o paciente não era submetido a "iatrogenias" naquela comunidade. 

          Não defendo a psiquiatria. Nem os grandes laboratórios, nem ciência alguma que traduza tudo em "neuroquímicas". E levei anos para entender isso, saber o lugar da medicação. Classificar tudo como simplesmente "doença" é fechar outros importantes canais de compreensão destes fenômenos. É atirar aos laboratórios fenômenos muito mais complexos do que nossos modelos neuronais, nossos modelos de neurotransmissores, do que esta abordagem "positivista" que retorna travestida de "sciencia". Como se todos estivessem a dissecar um computador de mesa em busca do "google" em suas peças. Curioso.




          Penso em "desequilíbrios". Estruturas. Existe o fator genético e todas as grandes "doenças" mentais surgem em indivíduos com histórico familiar próprio. O "desequilíbrio", nestes casos, estaria localizado em um nível profundo, genético. Uma "depressão" oriunda deste nível é realmente uma depressão, quase independe de fatores ambientais e seria injusto não medicá-la. Uma "ansiedade" deste mesmo nível muitas vezes torna-se incapacitante. E o que dizer das psicoses? Quem já viu um ser imerso em suas alucinações, totalmente desalinhado desta "realidade", incapaz de separar-se de seus pensamentos e identificá-los como "de dentro", seus, nunca esquece. A expressão de um sofrimento perdido, infinito, desagregante, o pavor congelado em atitudes desconexas, a DOR. A própria imagem do naufrágio. Tente "curá-lo" com piadinhas e alegrias, abraços, relaxamentos, tente enchê-lo de conversas acolhedoras, diga a ele que eliminar quimicamente seus delírios e alucinações não passa de uma iatrogenia... Tente seguir o conselho de nosso alegre doutor, mas não se coloque no lugar do psicótico. 




          Trabalhar com psiquiatria é trabalhar num "front". O mundo quebra dia a dia, moralmente, economicamente, politicamente, o mundo rebenta seus atores e os recebemos em número cada vez maior. Não podemos tomar o fuzil e cobrar do mundo alguma dignidade, pelo menos. E este mesmo mundo já criou a "solução" para estes feridos, uma solução oportuna e lucrativa. As drogas (lícitas e ilícitas). E é quase tudo o que dispomos para este embate. "Integrar o paciente à sociedade". Que sociedade? 

          Você adoece, surta, sua estrutura ruiu, certo, escuta vozes, sabe-se perseguido, sofre a mais brutal das dores. O que posso fazer? Te medico. Tuas vozes somem, teus delírios aquietam, algum alívio... E daí? Como posso mudar tua cidade, tuas relações com as pessoas, com teu trabalho, como posso te integrar a um mundo mais justo e decente? Como posso alterar uma estrutura genética e te dizer: "pronto, agora nunca mais terás uma crise!". A tua e a minha existência são também partes desta dor insana e brutal. Estamos na corrente. Ao menos pudemos medicar, conteve-se a crise em alguns dias, ao menos evitamos que alguém ficasse dois ou três meses num hospício imundo (enchendo o rabo de alguém de dinheiro público). Mas a medicação que usamos também enche outros rabos de dinheiro público. Fazer? 




          É fácil defender uma ideologia qualquer referente a algo que não vivemos na prática. Gritar o próprio nome ao mundo acadêmico e insuflarmo-nos como um Mestre. É fácil impor, do alto de uma fama vazia, políticas públicas de saúde mental, reformas, condutas, sem estrar-se mergulhado na realidade até o pescoço. E se mostramos que a coisa é, em si, sem esperança, somos taxados de pessimistas e nossas cabeças rolam. Ainda não consigo rir-me disso, desta "farofa de reforma aos quatro ventos", verdadeiro primor da "psicoculinária" moderna. Os leiloeiros da "sciencia" berram, apregoam, escandalizam, terminam seus pós-pós-pós-pós alguma coisa, engordam... Mas não vão contra o Grande Sistema que os sustenta. E que fornece os seus lexotans impecavelmente. 




          "MedicaLEZARAM" o mundo. Pílulas, poções mágicas, remedinhos. Tempos de alívio imediato e garantido. A última festa num navio que naufraga, vale tudo. Teríamos, se sobrevivêssemos, futuramente, pílulas para meninos chorões. Pílulas para políticos corruptos, para a fome, para a falta de saneamento básico, para questionadores, para tudo. Pastilhas tanto para meninos que não se aguentam na escola como para professores agredidos por monstrinhos armados. E pílulas para a família destes monstrinhos. Para pais alcoólatras, tios abusadores, espancadores, enfim. Melhor consumir tabletinhos e entrar no paraíso que enxergar o inferno que chamusca nossos pés. 




          Uma grande colega já dizia em seus sermões: "você trabalha neste inferno, você vê, tem coração - então você, diante de tudo isso, ou adoece também, ou se torna um psicopata, simplesmente aceitando tudo, tá bom, sai de seu consultório e, ao final da noite, toma tranquilamente seu "lexotam" contando seu dinheirinho". 

                                                                             * * *



          Eu quase adoeci. E nunca gostei de "lexotans". Não sei bem o que me aconteceu ao meio do caminho. Me pego um dia, subitamente, cheio de fugas e descubro que preciso de "mim". Deste complexo de sentimentos contraditórios, esperanças, "traumas", bloqueios, sede, dores, conhecimentos e alguma inteligência. Olho para esta sopa caótica e descubro que é isso, exatamente isso que vai me levar para fora daqui. Que nisso começava alguma coisa diferente, autêntica. Aí estava todo o material bruto que precisava para esta operação alquímica. 

          Algo íntimo que não se pode passar, inútil a outro referencial, a única possibilidade para a consciência. Não mais fugir desta dor que assola cada espaço aqui dentro, não bebê-la ou atirá-la entre lindas pernas numa noite devassa e fugidia, noite após noite. Entendendo aos poucos que a matéria é apenas um dos sonhos da respiração - do sono diurno. Não mais existia um esgoto, uma dor "minha", daqui de dentro, presa, isso era do mundo por onde passo às vezes. Sem revoltas ou revoluções. Apenas um processo, um fenômeno. Não estou calmo, não estou feliz, nem revoltado, não estou conformado - apenas não estou mais. 

                                                                            * * * 





          Certo dia voltei ao quintal do serviço com a máquina fotográfica ao pescoço e não havia mais bananeira. Fora simplesmente cortada, apenas caules secos tentando respirar do solo. Nenhum verde, nenhum gafanhoto, louva - a - deus, nenhuma fotografia. Nunca entendi como alguém - um humano - pôde fazer aquilo. Como aquele ser assassinado pôde ter incomodado alguém, prejudicado alguém. Talvez pela sua mania de ficar filosofando com um velho psiquiatra duas tardes por semana ao invés de dar bananas. O lugar ficou vazio, a terra seca em volta, nenhuma vida. Pude enxergar a essência do coração humano enquanto escravo, enquanto gado. Foi a última lição que a velha bananeira me ensinou.

                                                                              * * * 
         
          



            


          

          

6 comentários:

  1. É... A realidade usa mascaras e de uma perfeição que não conseguimos nos identificar se como problema ou solução, vivemos a pre-destinados ao caos de nossos próprios pensamentos e valores pouco a pouco rateados.
    Os nobres senhores que nós mesmos concedemos o tão almejado poderes públicos, tendo neles a ilusão de que seremos parte nem falo em atuante, mas sim parte de um sistema pre- estabelecidos para dar-lhes lucros alegando-nos a falsa esperança de sermos enquadrados nesta tal de sociedade globalizada, quando na verdade somos vistos apenas como lixo social de uma sociedade hipócrita.

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  2. ... simplesmente percebemos que é hora de sair, pronto, isso. Fiquem nesta barca os senhores escravos classe A (oprimindo e sugando os escravos Classe B)... é uma democracia, não?

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  3. Sem dúvida amigo Ex-bórnio, isso tudo forma uma grande engrenagem complexa demais para se resolver com soluções simples e mediáticas. Talvez não exista saída ou solução para a grande maioria das questões que você coloca. Então só nos resta perguntarmos a nós mesmos, o que eu enquanto indivíduo posso fazer? Que ação posso realizar, e será que posso atuar de alguma forma? O Navio já naufragou. Várias pessoas estão morrendo. Morrerei com eles ou tentarei me salvar para assim ajudar outros de alguma forma? Não posso ajudar os outros se eu mesmo não tiver energia para isso. Acho que você já sabe a resposta. Mas para que seus leitores possam tê-la também eu digo: comece por si mesmo! Penso que seja a única "ação" realmente possível! Adorei os escritos e as imagens. Frateros e até a próxima!

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  4. compreendestes!!! isso acaba. E isso em mim começa (recomeça) agora neste fim... Algumas flores nascem das tumbas... Há sementes que só germinam nos infernos... e o mundo nos quis aqui, agora... sem questões, com viver... abraços!!!!

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  5. dificil....nem sei o q falar pq qq coisa q eu fale, soaria estranha pra mim, imagino pra voces! parabéns pelo texto! e o duro são as letrinhas pra postar esse texto : "prove que voce não é um robo ! " - q tapa na cara!

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  6. Cara, o problema é que sou um robo... E eles nunca desconfiam...

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