segunda-feira, 25 de junho de 2012

Dos Tocados




          O Professor Alsibar postou em seu blog um artigo muito interessante cujo assunto me vinha coçando o juízo há meses    (http://alsibar.blogspot.com.br/2012/06/iluminacao-ou-loucura.html?showComment=1340582770859#c6896109765428238990).

          Psicóticos, Iluminados, Oportunistas... Que relações existem entre estes indivíduos e a "doença mental"? O que leva um ser a escutar vozes e fechar-se em si, ou largar as coisas do mundo "morrendo" para o ego, ou explorar criminosamente multidões com seu carisma? O que os diferenciaria dos "normais?


        
            "Psicótico", para nossa ciência, está definido não como um diagnóstico (como depressão ou esquizofrenia, por exemplo), mas como um conjunto de sintomas específicos. Reza nosso CID 10 (o código de classificação de transtornos mentais, décima edição, proposto pela ONU):
          "Psicótico foi mantido como um termo descritivo conveniente (...). Seu uso não envolve pressupostos acerca de mecanismos psicodinâmicos, porém simplesmente indica a presença de alucinações, delírios ou de um número limitado de várias anormalidades de comportamento, tais como excitação e hiperatividade grosseiras, retardo psicomotor marcante e comportamento catatônico". (OMS, 1993,p.3).

           "Psicótico" refere-se a um indivíduo que apresenta sintomas específicos sem referência a uma causa ou diagnóstico. Estes sintomas poderiam estar presentes em um grande número de transtornos. A mídia, entretanto, aproximou este conceito ao de "esquizofrenia", pois boa parte destes sintomas ocorrem nas esquizofrenias.

          O esquizofrênico em geral apresenta um mundo interno caótico, desestruturado, sua fragilidade é tal que permite esta impressionante variação de consciência e estas construções aberrantes de mundo. Habitam um "espaço existencial" extremamente frágil e à mercê de suas correntes internas desorganizadas, sombrias. Experimentam quase sempre  o pior dos infernos. Em alguns casos, seus delírios os arrastam a crenças e práticas absurdas e até danosas. O relacionar-se com o mundo quase sempre adquire tonalidades grotescas e incompreensíveis para nós. Mas todos são, essencialmente, místicos. Em relação ao "modelo hipotético" que divido com o Professor Alsibar, diria que o caminho místico exige o pleno sacrifício do ego, um sacrifício "racional", vivido na realidade. Mas estes paciente nem mesmo conseguiram estruturar um ego plausível, sólido. Daí pergunto ao professor Alsibar se o ego teria uma função estruturante ao início do caminho. Talvez tenhamos que passar pelo estágio de "ego comum", com um ego bem formado e estruturado, pois estes fundamentam-se em nossas defesas psíquicas. Em outras palavras, é como se nossa "iluminação" necessitasse de uma estrutura equilibrada para poder operar, de um ego "normal" e constituído por nossas defesas mais íntimas. Considero perigoso intervir no ego de um sujeito, suas defesas, as formas com que este sujeito enfrenta seu embate com a vida. Não sabemos até que ponto uma estrutura pode suportar sem as suas defesas (mesmo as mais primitivas). 



          Certo dia, há anos, um livro cai-me sobre a cabeça, estava a remexer as prateleiras de uma livraria em Fortaleza. Olho-o curioso. Veio aquele impulso e o levei. Comecei a lê-lo uns seis meses depois. Tratava-se de "O Couro Dos Espíritos", de Bete Midlim (http://www.terceironome.com.br/couro.html). Um livro sobre tradições orais dos índios gaviões. Para mim foi um "toque transcendente" em relação à minha profissão. O que se encaixa agora, nestes escritos: quando um jovem índio começava a escutar vozes, ver onças e sereias pelos cantos, agir de forma estranha (o mesmo sofrimento de quem ingressa numa esquizofrenia, atualmente...)...O que ocorria? Vinha o Pajé, olhava o moleque e dizia: "Este é meu". Daí por diante, nosso indiozinho seria iniciado nas "ciências ocultas" deste Pajé, teria agora um novo significado para seus sintomas "psicóticos" e se tornaria outro Pajé. Estaria "curado" de sua psicose, mas vivendo o restante de seus dias numa outra dimensão. Como se a "cura" só fosse possível nesta nova dimensão de ser. É daí que tiro o parentesco de algumas "esquizofrenias" com o misticismo. Hoje não temos Pajés (temos psiquiatras... ). E todos os Pajés tinham sido meninos "estranhadores de mundo"...

          Quanto aos "iluminados"... Que pensar desta categoria incerta e pouco conhecida? Sou um cético por natureza, um Místico Cético. As tentativas de compreender este mundo me fizeram desde cedo pensar nas "transcendências". Meu primeiro Mestre foi o ceticismo implícito em Krishnamurti - não o ser cético em relação a deus, mas ao que fizeram desta palavra - cético em relação ao que os humanos fizeram com o mundo, com a religião, a moral e a filosofia (especialmente a metafísica). Enquanto envelhecia, as religiões foram se transformando num comércio cada vez mais evidente (e seus crentes, nuns oportunistas divinos). Cada vez mais este mal engolia humanos (humanos cada vez mais pedinchões). A única coisa que eu podia pedir em minhas "preces" era "lucidez", e inicialmente a mim mesmo. Então foram-se as igrejas e seus crentes. Mas ficou uma só certeza: a de que podemos atingir um estado "mental" totalmente diferente, irreversivelmente diferente dos estados mentais que encontramos nas vitrines modernas. Alguns resolveram chamar isso de "iluminação". Acho um belo termo. 

          Ou você já nasce com tendências para o "incomum", ou você as adquire depois de uma boa sova da vida (se tiver sorte e não surtar). É assim. Divido o mesmo diagnóstico com o Professor Alsibar: "estranhofrênicos". Nascemos assim. Se vamos acertar o passo, é outra história. Não basta ter o germe disso em si. Muito trabalho árduo pela frente (até percebermos que nenhum trabalho é necessário). Um trabalho solitário e sem nenhum apoio divino, nenhum consolo religioso ou filosófico, somente a entrega para o "Aqui e o Agora". Sim, o que queremos é a coisa mais improvável de acontecer aos humanos (olha a nossa sorte...!!!...). O transcender. Apenas isso. O impossível aos egos. Os caminhos levam até o portal. Após isso, acontecemos em silêncios e segredos, plenitudes.



          Os Grandes "Mestres" oportunistas tinham lá suas sementes para o "incomum". Sentiam o que sentimos, talvez tentassem como tentamos no começo. Que houve com eles? A sorte os traiu. Seus carismas juntavam multidões (e, a seguir, multidões pagantes). Por que não caminhar numa senda onde o dinheiro não falta, onde vai-se embora nossa fome e desconforto? A coisa passa a subir à cabeça. São carismáticos, então nosso instinto mais básico é tocado: Eu Sou (o ego). Os grandes "mestres" trágicos sofreram disso, foram tragados pelo caminho. E sempre o serão. Falo aí do Vaticano, de Osho, de todos aqueles citados pelo Professor Alsibar. Tinham aptidão ao incomum. Foram traídos pelo próprio ego.

          Acho que muitos destes oportunistas sofriam da mesma doença que compartilho com "Seu Alsibar" e alguns poucos. Conheciam a possibilidade da transcendência. Alguns foram educados num meio propício (Osho, na Índia). Mas perderam o jogo. Continuaram escravos do ego na hora da (triste) morte.

          Os Grandes Oportunistas não poderiam ser classificados em um diagnóstico pelo CID 10. Nem nós. O fato é que o embate diário de um ser com sua existência não admite diagnósticos. Algumas estruturas sim, mas não seus embates.

          Quanto aos "normais", os conhecemos muito bem, pois agimos assim por algumas momentos. Quando nos aborrecemos, quando nos entediamos, quando pensamos numa possibilidade de agir desprovida de amor. Ou quando esquecemos de nosso caminho de libertação. A sorte é que podemos perceber isso. A maioria não. Adoro o termo "Mutante", de Pierre Weill. Em seu livro "Os Mutantes", Weil trabalha outro de seus conceitos originais, a "normose":

 " (...) A normose pode ser definida como um conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir, que são aprovados por consenso ou pela maioria em uma determinada sociedade e que provocam sofrimento, doença ou morte. Em outras palavras, é algo patogênico, é letal, executado sem que seus atores tenham consciência de sua natureza patológica.(...) A normose é, portanto, uma normalidade doentia". Ainda, em relação a este processo: " (...) A característica comum a todas as formas de normose é seu caráter automático e inconsciente. Podemos falar, no caso, do espírito de cordeiros. De um modo geral, os seres humanos, por preguiça e comodismo, seguem o exemplo da maioria. Pertencer à minoria é tornar-se vulnerável, expor-se à crítica. Por comodismo, as pessoas seguem e repetem o que dizem os jornais: se está impresso, deve estar certo! Quantas não aderem a uma ideologia, religião ou partido político só porque é moda ou para serem bem vistas pelos demais? Uma maneira disfarçada de manipular as opiniões e mudar os sistemas de valores é anunciar que eles são adotados pela maioria da população. Neste sentido, toda normose é uma forma de alienação. Facilita a instalação de regimes totalitários e dos sistemas dominantes. (...)".

           Os "normais" seriam aqueles que vivem em função dos sonhos e dos seus traumas, empurrados muitas vezes pelo instintivo " de rebanhos", que deixaram de buscar algo maior - ou o buscam no que foi "autorizado" para normais (as igrejas, por exemplo). São afastados do "aqui - e - agora" e provavelmente não suportariam a quebra de suas defesas, seus egos. O "normal" é normal para este contexto - é o xiita que acha "normal" enforcar homossexuais e apedrejar mulheres, é o americano que apóia a pena de morte e as invasões a outros países, ou o brasileiro que elegeu um certo "Tiririca" (ou outros monstros piores ainda). É também o trabalhador honesto que ganha sua vida na maior dificuldade, sem tempo para metafísicas e filosofias. O perigo dos normais é o controle a que são submetidos por um sistema. Seguem sempre como gado aparvalhado. Comunismos. Capitalismos. Mídia. Basta ver como estamos atualmente de "planeta". Também o fato de aceitarem naturalmente certas divisões reforçadoras de egos e a serviço de sistemas de controle: as divisões raciais, por exemplo, as religiosas etc.

          Muito interessante a citação de Jean - Yves Leloup ("Os Mutantes"):

          " (...) A existência desenvolve-se por meio de desejos e medos. O desejo inconsciente é o desejo do Aberto, apreendido como total presença ou plenitude, denominado, em grego, pléroma. O medo inconsciente é o medo do Aberto, compreendido como total vacuidade, aniquilamento ou dissolução do ego: em grego, kénosis. (...) O ser humano transforma-se, portanto, pelo seu desejo de pléroma, vencendo o medo de kénosis. Existe em todos nós um desejo de plenitude e, ao mesmo tempo, o medo do aniquilamento. Em outras palavras, eros e thanatos, a pulsão de vida e a pulsão de morte, plenitude e aniquilamento são, portanto, dois modos de apreensão do Aberto: um positivo e outro negativo. Um como objeto de desejo e outro como objeto do medo; uma mesma realidade que é desejada e que nos amedronta... E a normose está relacionada com a pulsão de morte. É estagnação do desejo, que impede o fluxo evolutivo. (...) A resistência à kénosis pode revelar-se inicialmente como: (1) - Medo diante do Aberto, que é a normose; (2) - Medo que se transforma em ansiedade e angústia diante do Aberto, que é a neurose; (3) - Medo que se desenvolve como terror diante do Aberto, que é a psicose (...)".




          A "opção desejada" pelo indivíduo tem a ver com sua estrutura (incluindo a genética). Me parece que as estruturas psicóticas apresentam um maior e mais direto contato com o Aberto. Suas defesas psíquicas, ao contrário das nossas, não me parecem eficientes e sólidas a ponto de salvá-los como neuróticos normóticos. Os Pajés e místicos também apresentam este contato mais próximo com o Aberto, como os psicóticos, mas seriam "salvos" por suas defesas egóicas mais estruturadas (ou com um auxílio especial, como nos casos dos antigos Pajés).

          Não estou afirmando que a cura da "esquizofrenia" reside no xamanismo, nem que o misticismo seja a realidade salvadora - mesmo porque não existe um misticismo, existem os místicos. Concordo com o Professor Alsibar no que ele aconselha aos buscadores. Ninguém deve ser seguido, nenhuma religião, nenhum "mestre". Só temos a nós mesmos, só podemos estar aqui, conosco. E somos espelhos de todo este universo - se soubermos entender isso, enxergar isso, então poderemos nos colocar em nosso exato lugar existencial: seres que começam. Que aspiram à liberdade, ao despertar. Vamos sofrer um bocado nestes embates com a vida, porque somos diferentes. Vamos "penar" mais um pouco. Mas se continuarmos sendo cada vez "menos" do que "somos", se continuarmos enxergando ao menos vultos nesta neblina envolvente, então teremos uma chance. É engraçado um Krishnamurtiano falando em tempos futuros, mas acontecemos, simplesmente isso.

          Um grande abraço, Professor. Acho que somos irmãos nesta jornada. Como uns raros que nos surgem dia a dia (o cara do "desreflexivo" -http://desreflexivo.blogspot.com.br/2012/06/sombra.html - ... apesar de paulista...)... Enfim, estamos aqui para uma ajuda mútua.

domingo, 24 de junho de 2012

Crescentes


                                                   Crescente de 23.06.2012, 20h10min.


Crescente de 24.06.2012, 20h15min.







   

sexta-feira, 22 de junho de 2012

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Psiquiatrices II



           Quando chegava mais cedo ao emprego e no intervalo do almoço, ficava ao lado da bananeira do quintal com a máquina ao pescoço. Passamos juntos quase um ano nesta troca de contatos, dois dias por semana.            

           A pobre ninfa andava pelas folhas quando a percebi. Prendi seus momentos em várias fotografias. Seu verde quase transparente - luz - em contraste com o verde escuro da folha me seduziu. A fotografei até que, irritada, ergueu suas patas dianteiras para as lentes na célebre "posição do louva - a - deus". Então percebi que não se tratava de um gafanhoto. 




          Talvez por aqueles conturbados tempos eu ainda precisasse de algo para manter alguma dose de lucidez e calma, passar a semana toda e todos os meses recebendo a dor do outro (a dor que emerge das camadas mais profundas da alma), precisava estar silencioso para ao menos ouvir. Se tivemos numa semana cinquenta "crises" de ansiedade, se o número de crises aumentava a cada dia, apenas um psicólogo, se vinte ou mais pessoas tinham que ser ouvidas num dia, o que fazer? Nunca gostei de soluções puramente químicas. Nem sou psicoterapeuta e nem o tempo permitiria 20 ou 30 decentes sessões num dia. Fugir da demanda, eliminando-a? Pessoas sofrem em todas as cidades, "rebentam" em seus embates com a existência, tornam-se desequilíbrios ambulantes. Poucos clínicos interessam-se realmente por "saúde mental", estão também mergulhados em suas unidades, atendem.




          Ganho meu pão com isso. Essencialmente, drogas lícitas. Em sedar o que não mais se aguenta e "reparar" quimicamente estruturas que não funcionariam por si neste contexto. Só podem julgar e entender isso os que um dia já necessitaram de algum medicamento (para a vida poder andar). Ou as que precisam para o resto de suas vidas. 

          A "dor do mundo" não pode ser sanada por drogas. Mas é mais fácil a reação quando certa calma volta à mente. Quando certos sintomas desestruturantes (alucinações e delírios) são abafados. Muito menos por "bons conselhos", leituras bíblicas, textos krishnamurtianos, vídeos de Eckhart Tolle. As igrejas encontram-se tão repletas quanto os ambulatórios. 

          A senhora "X" veio pela primeira vez à consulta porque não suportava seus sintomas. As dores de cabeça, a desesperança, o humor rebaixado, a irritação aumentada aos extremos, o desespero que explodia a cabeça nalguns momentos. Mora numa casa miserável com a sua mãe e os oito filhos que veio colocando no mundo. Seu bairro, mais um dos bairros tomados pelos traficantes. Os filhos mais velhos parecem andar às noites com um pessoal esquisito. Esposo alcoólatra que já a espancou algumas vezes. Esta senhora já tentou sair desta vida ingerindo comprimidos. Vive da bolsa - família que recebe e de alguma ajuda da sua mãe, uma aposentada que toma remédios para a insônia e a pressão alta. Chega ao ambulatório. Sim, sim, deveria levantar da mesa, tomá-la pelo braço, ir primeiramente à prefeitura, expor o caso a estes senhores sensíveis e democráticos, depois levá-la à delegacia, solicitar que estes outros senhores tenham mais cuidado com aquele bairro, que prendam os traficantes... Fazer a pobre mulher citar nomes e pontos para facilitar o trabalho das forças da lei... Então levar a denúncia a um fórum, emfim. Terminaríamos a nossa jornada numa sala de assistência social do município solicitando, por exemplo, cestas básicas. Assim, tomadas as providências, tudo estaria resolvido e nenhuma receita seria despachada. Certo.




          A senhora "X" não suportava seu mundo. Este mundo. Este. Como 20 ou 30 senhoras e senhores que me visitam diariamente. E duvido que o mínimo de condições humanas e dignas de sobrevivência, o tornar esta sociedade ao menos "basal", sem fome, sem drogas ou escândalos... Duvido que isso deixasse de trazer senhores aos consultórios... Mas deveríamos partir daí, deste ponto. Aí talvez pudéssemos colocar Krishnamurtis e Tollers em nossas salas. 

          Certo médico famoso e mundialmente conhecido pela mídia disse, certa vez, numa entrevista (Brasil, TV Cultura), que todo o ato de medicar, em psiquiatria, é uma iatrogenia. Bela rima. "Iatrogenia " é o nome dado a qualquer erro decorrente da aplicação de um medicamento. Para que se faça uma afirmação dessas é necessário uma grande dose de desconhecimento, e duvido que uma universidade norte americana não administre boas lições de psiquiatria aos seus alunos. Penso em oportunismo (seres midiáticos e políticos de "nobres causas" são peritos em manipulação de realidades). Ou trauma. Sua companheira foi assassinada por um esquizofrênico paranóide (que fazia parte de sua "comunidade" de pacientes). Provavelmente o paciente não era submetido a "iatrogenias" naquela comunidade. 

          Não defendo a psiquiatria. Nem os grandes laboratórios, nem ciência alguma que traduza tudo em "neuroquímicas". E levei anos para entender isso, saber o lugar da medicação. Classificar tudo como simplesmente "doença" é fechar outros importantes canais de compreensão destes fenômenos. É atirar aos laboratórios fenômenos muito mais complexos do que nossos modelos neuronais, nossos modelos de neurotransmissores, do que esta abordagem "positivista" que retorna travestida de "sciencia". Como se todos estivessem a dissecar um computador de mesa em busca do "google" em suas peças. Curioso.




          Penso em "desequilíbrios". Estruturas. Existe o fator genético e todas as grandes "doenças" mentais surgem em indivíduos com histórico familiar próprio. O "desequilíbrio", nestes casos, estaria localizado em um nível profundo, genético. Uma "depressão" oriunda deste nível é realmente uma depressão, quase independe de fatores ambientais e seria injusto não medicá-la. Uma "ansiedade" deste mesmo nível muitas vezes torna-se incapacitante. E o que dizer das psicoses? Quem já viu um ser imerso em suas alucinações, totalmente desalinhado desta "realidade", incapaz de separar-se de seus pensamentos e identificá-los como "de dentro", seus, nunca esquece. A expressão de um sofrimento perdido, infinito, desagregante, o pavor congelado em atitudes desconexas, a DOR. A própria imagem do naufrágio. Tente "curá-lo" com piadinhas e alegrias, abraços, relaxamentos, tente enchê-lo de conversas acolhedoras, diga a ele que eliminar quimicamente seus delírios e alucinações não passa de uma iatrogenia... Tente seguir o conselho de nosso alegre doutor, mas não se coloque no lugar do psicótico. 




          Trabalhar com psiquiatria é trabalhar num "front". O mundo quebra dia a dia, moralmente, economicamente, politicamente, o mundo rebenta seus atores e os recebemos em número cada vez maior. Não podemos tomar o fuzil e cobrar do mundo alguma dignidade, pelo menos. E este mesmo mundo já criou a "solução" para estes feridos, uma solução oportuna e lucrativa. As drogas (lícitas e ilícitas). E é quase tudo o que dispomos para este embate. "Integrar o paciente à sociedade". Que sociedade? 

          Você adoece, surta, sua estrutura ruiu, certo, escuta vozes, sabe-se perseguido, sofre a mais brutal das dores. O que posso fazer? Te medico. Tuas vozes somem, teus delírios aquietam, algum alívio... E daí? Como posso mudar tua cidade, tuas relações com as pessoas, com teu trabalho, como posso te integrar a um mundo mais justo e decente? Como posso alterar uma estrutura genética e te dizer: "pronto, agora nunca mais terás uma crise!". A tua e a minha existência são também partes desta dor insana e brutal. Estamos na corrente. Ao menos pudemos medicar, conteve-se a crise em alguns dias, ao menos evitamos que alguém ficasse dois ou três meses num hospício imundo (enchendo o rabo de alguém de dinheiro público). Mas a medicação que usamos também enche outros rabos de dinheiro público. Fazer? 




          É fácil defender uma ideologia qualquer referente a algo que não vivemos na prática. Gritar o próprio nome ao mundo acadêmico e insuflarmo-nos como um Mestre. É fácil impor, do alto de uma fama vazia, políticas públicas de saúde mental, reformas, condutas, sem estrar-se mergulhado na realidade até o pescoço. E se mostramos que a coisa é, em si, sem esperança, somos taxados de pessimistas e nossas cabeças rolam. Ainda não consigo rir-me disso, desta "farofa de reforma aos quatro ventos", verdadeiro primor da "psicoculinária" moderna. Os leiloeiros da "sciencia" berram, apregoam, escandalizam, terminam seus pós-pós-pós-pós alguma coisa, engordam... Mas não vão contra o Grande Sistema que os sustenta. E que fornece os seus lexotans impecavelmente. 




          "MedicaLEZARAM" o mundo. Pílulas, poções mágicas, remedinhos. Tempos de alívio imediato e garantido. A última festa num navio que naufraga, vale tudo. Teríamos, se sobrevivêssemos, futuramente, pílulas para meninos chorões. Pílulas para políticos corruptos, para a fome, para a falta de saneamento básico, para questionadores, para tudo. Pastilhas tanto para meninos que não se aguentam na escola como para professores agredidos por monstrinhos armados. E pílulas para a família destes monstrinhos. Para pais alcoólatras, tios abusadores, espancadores, enfim. Melhor consumir tabletinhos e entrar no paraíso que enxergar o inferno que chamusca nossos pés. 




          Uma grande colega já dizia em seus sermões: "você trabalha neste inferno, você vê, tem coração - então você, diante de tudo isso, ou adoece também, ou se torna um psicopata, simplesmente aceitando tudo, tá bom, sai de seu consultório e, ao final da noite, toma tranquilamente seu "lexotam" contando seu dinheirinho". 

                                                                             * * *



          Eu quase adoeci. E nunca gostei de "lexotans". Não sei bem o que me aconteceu ao meio do caminho. Me pego um dia, subitamente, cheio de fugas e descubro que preciso de "mim". Deste complexo de sentimentos contraditórios, esperanças, "traumas", bloqueios, sede, dores, conhecimentos e alguma inteligência. Olho para esta sopa caótica e descubro que é isso, exatamente isso que vai me levar para fora daqui. Que nisso começava alguma coisa diferente, autêntica. Aí estava todo o material bruto que precisava para esta operação alquímica. 

          Algo íntimo que não se pode passar, inútil a outro referencial, a única possibilidade para a consciência. Não mais fugir desta dor que assola cada espaço aqui dentro, não bebê-la ou atirá-la entre lindas pernas numa noite devassa e fugidia, noite após noite. Entendendo aos poucos que a matéria é apenas um dos sonhos da respiração - do sono diurno. Não mais existia um esgoto, uma dor "minha", daqui de dentro, presa, isso era do mundo por onde passo às vezes. Sem revoltas ou revoluções. Apenas um processo, um fenômeno. Não estou calmo, não estou feliz, nem revoltado, não estou conformado - apenas não estou mais. 

                                                                            * * * 





          Certo dia voltei ao quintal do serviço com a máquina fotográfica ao pescoço e não havia mais bananeira. Fora simplesmente cortada, apenas caules secos tentando respirar do solo. Nenhum verde, nenhum gafanhoto, louva - a - deus, nenhuma fotografia. Nunca entendi como alguém - um humano - pôde fazer aquilo. Como aquele ser assassinado pôde ter incomodado alguém, prejudicado alguém. Talvez pela sua mania de ficar filosofando com um velho psiquiatra duas tardes por semana ao invés de dar bananas. O lugar ficou vazio, a terra seca em volta, nenhuma vida. Pude enxergar a essência do coração humano enquanto escravo, enquanto gado. Foi a última lição que a velha bananeira me ensinou.

                                                                              * * * 
         
          



            


          

          

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Krishnamurti - A Corrente


A Corrente

Discussão entre J. Krishnamurti, Alain Naudé e Mary Zimbalist, em 4 de janeiro de 1972, no dia seguinte àquele em que Krishnamurti e Sidney Field, um velho amigo, se encontraram para falar da recente morte do irmão deste.

K - No outro dia, Sidney Field veio ver-me. Seu irmão John havia falecido recentemente. Ele desejava saber se o irmão vivia em outro nível de consciência; se havia uma entidade John que devesse nascer numa próxima vida; se eu acreditava em reencarnação e o que significava ela. Eram muitas as perguntas. Ele estava sofrendo porque amava o irmão. Dessa conversa surgiram duas coisas: primeira - haverá um ego permanente? Se há, então qual será sua relação com o presente e com o futuro - sendo o futuro uma próxima vida ou daqui a dez anos? Caso se admita, aceite ou afirme que há um ego permanente, então a reencarnação ...
N - ... é inevitável.
K - Não. Não diria que é inevitável, mas, possível, pois, para mim, o ego permanente (se é que é permanente) pode mudar no espaço de dez anos. Em dez anos, ele pode encarnar mudado.
N - Em todas as escrituras indianas lemos isso. Soubemos de casos de crianças que se lembram da vida passada; de uma garotinha que disse: "Que é que eu estou fazendo aqui? Minha casa fica em outra vila. Sou casada com Fulano. Tenho três filhos." Creio que muitos desses casos foram verificados.
K - Não sei. Portanto a coisa é essa. Se não há qualquer entidade permanente, o que é reencarnação? Ambas as coisas implicam tempo; ambas implicam movimento no espaço - espaço como meio-ambiente, relação, compulsão - tudo dentro do espaço-tempo.
N - No tempo e nas circunstâncias do tempo.
K - E isso significa cultura, etc.
N - Dentro de uma estrutura social.
K - Haverá, portanto, um eu permanente? Claro que não. Mas Sidney afirmou: "Então, por que é que eu sinto que John está comigo? Quando entro no quarto, sei que ele está lá. Eu não estou ficando doido. Não estou imaginando nada. Eu o sinto como sinto minha irmã que esteve ontem naquele quarto. isso é evidente.”
N - Por que diz "claro que não"? Pode explicar?
K - Espere aí. Ele disse: "Meu irmão está lá." Eu respondi: "Claro que sim. Antes de mais nada, porque o senhor projeta as associações e recordações que tem de John. Essa projeção é a sua própria memória.”
N - Nesse caso, trata-se do John que está dentro do senhor.
K - Isso mesmo. "Quando John vivia, estava associado ao senhor. Estava junto do senhor. Enquanto ele vivia, embora não o visse durante o dia todo, ele estava presente naquele quarto."
N - Estava presente lá. E talvez seja isso o que as pessoas querem dizer quando falam da aura.
K - Não. Aura é outra coisa. Não vamos falar disso agora.
Z - Posso interromper? Quando diz que ele estava naquele quarto, vivo ou morto, quer dizer que havia algo fora do seu irmão ou da sua irmã, ou estava na consciência deles?
K - Estava não só na consciência deles como fora também. Posso projetar meu irmão e dizer que ele esteve comigo na noite passada, sentir que ele estava comigo; isso pode provir de mim. A atmosfera de John, que morreu há dez dias, seus pensamentos, sua maneira de agir ainda permanecem lá, mesmo que, fisicamente, ele possa ter ido embora.
N - É a força psíquica.
K - É o calor físico.
Z - Está dizendo que existe uma espécie de energia, na falta de melhor palavra, que os seres humanos desprendem?
K - Tiraram uma fotografia de um estacionamento que estivera cheio de carros e, embora já não houvesse mais nenhum, a foto mostrava a forma dos carros que tinham estado.
N - É, eu vi isso.
K - Isso significa que o calor deixado pelos carros ficou no negativo.
N - Quando estivemos em Gstaad (na primeira vez em que fui seu hóspede em Gstaad, em Les Capris) e o senhor viajou, antes de nós, para a América, eu entrei no seu apartamento. O senhor já estava a caminho da América, mas sua presença lá era muito forte.
K - É isso aí.
N - Sua presença era tão forte, que tínhamos a impressão de poder tocá-lo. E não era simplesmente porque estivesse pensando no senhor antes de entrar.
K - Há, portanto, três possibilidades: projeção da minha lembrança e da minha consciência ou captação da energia residual de John.
N - Como um cheiro que permanece.
K - O pensamento de John ou a existência de John ainda está lá.
N - Essa é a terceira possibilidade.
Z - Que quer dizer com a existência de John?
N - Que John está realmente lá como antes de morrer.
K - Eu vivo num quarto durante anos. Nele ficam presentes minha energia, meus pensamentos e meus sentimentos.
N - Ele conserva aquela energia; é por isso que, quando vamos para uma nova casa, às vezes leva tempo até que fiquemos livres da pessoa que morava lá antes, embora não a tenhamos conhecido.
K - Aí estão, portanto, as três possibilidades. E a outra é o pensamento de John, pois John se apega à vida. Os desejos de John estão no ar; não, no quarto.
N - Imaterialmente.
K - Sim. Estão lá exatamente como um pensamento.
N - Significa isso que John está consciente, que há um ser auto-consciente que se chama John e que emite esses pensamentos?
K - Duvido.
N - Creio que é isso o que afirmariam as pessoas que acreditam na reencarnação.
K - Veja o que acontece, senhor. Isto cria uma quarta possibilidade: a idéia de que John, cujo corpo físico já se foi, existe em pensamento.
N - Em seu próprio pensamento ou no de outro?
K - Em seu próprio pensamento.
N - Existe como uma entidade pensante?
K - Como uma entidade pensante.
N - Como um ser consciente.
K - Ouça isto: é interessante. John continua porque ele é o mundo da mediocridade, da ambição, da inveja, da bebida, da competição. Esse é o padrão normal do homem. Esse padrão continua e John pode estar identificado com isso, ou é isso.
N - John é um conjunto de desejos, pensamentos, crenças, associações ...
K - Do mundo.
N - Que estão encarnados e que são materiais...
K - E isso é o mundo, isso é todo mundo.
N - É muito importante o que o senhor está dizendo. Seria bom se pudesse explicar um pouco mais. O senhor diz que John continua e que ele continua porque é a continuação do vulgar nele, isto é, uma ligação material e mundana.
K - Correto. É o medo, o desejo de poder, posição. É o que é comum no mundo. Ele é do mundo e é o mundo que encarna.
N - O senhor diz que o mundo encarna?
K - Considere a multidão. Estão todos agarrados a essa corrente e ela prossegue. Eu posso ter um filho que faz parte da corrente e preso a ela também está John. E meu filho pode ter algumas atitudes semelhantes às de John.
N - Ah! mas o senhor está dizendo coisa diferente.
K - Estou.
N - O senhor está dizendo que John se acha em todas as recordações que diversas pessoas têm dele. Nesse aspecto, vemos que ele realmente existe. Lembro-me de um amigo meu, não há muito falecido; era evidente para mim, quando pensava no fato, que ele permanecia bem vivo na lembrança de todos que gostavam dele.
K - Exatamente.
N - Portanto ele não estava ausente do mundo. Ele ainda se encontrava na corrente dos acontecimentos a que chamamos mundo, isto é, as pessoas que se haviam ligado a ele. Nesse sentido, talvez ele viva para sempre.
K - A menos que ele saia da corrente, se não for um homem vulgar - usando a palavra vulgar com o sentido de ambição, inveja, poder, posição, ódio, anseios e tudo mais. A menos que eu esteja liberto da vulgaridade, continuarei sendo vulgar, conservarei toda a vulgaridade humana.
N - Sim, serei essa vulgaridade se persistir nela, se nela encarnar, se lhe der vida.
K - Portanto, eu encarno na vulgaridade. Assim, eu posso, primeiro, projetar meu irmão John.
N - Nos meus pensamentos, na imaginação, na minha lembrança. O segundo ponto é este: posso captar sua energia cinética que está em volta.
K - Seu cheiro, suas inclinações, suas palavras.
N - O cachimbo não fumado sobre a escrivaninha, a carta inacabada.
K - Tudo isso.
N - As flores colhidas no jardim.
K - Em terceiro lugar, o pensamento que permanece no quarto.
N - O pensamento permanece no quarto?
K - As emoções.
N - Talvez que o equivalente psíquico da energia cinética.
K - Sim.
N - O pensamento dele permanece quase como um cheiro material, como um cheiro físico.
K - Correto.
N - A energia do pensamento permanece como um velho casaco pendurado.
K - O pensamento, o desejo. Se ele possuía vontade, desejos e pensamentos intensos, isso também permanece.
N - Mas isso não difere do terceiro ponto. O terceiro ponto é que o pensamento permanece, isto é, a vontade, o desejo.
K - O quarto ponto é a corrente da vulgaridade.
N - Mas isso não ficou bem claro.
K - Veja, senhor: eu vivo uma vida normal, como milhões de outras pessoas. Eu vivo a vida comum, um pouco mais refinada, mais ou menos elevada, dentro, porém, da mesma corrente. Eu sigo esse curso. Eu sou essa corrente. O eu, que é esse curso, continua na corrente, na corrente do eu. Não sou diferente de milhões de outras pessoas.
N - Então, o senhor está dizendo que, embora morto, eu continuo porque continuam as coisas que eu sou?
K - No ser humano.
N - Nesse caso, eu sobrevivo. Eu não era diferente das coisas que preenchiam minha vida e me preocupavam.
K - Isso mesmo.
N - Significa isso, então, que, por assim dizer, eu sobrevivo porque sobrevivem as coisas que preenchiam e ocupavam minha vida.
K - Certo. Esse é o quarto ponto.
N - A questão é o quinto. Haverá uma entidade pensante e consciente que sabe que está consciente quando todos dizem: "Lá se vai o pobre e velho John; nós o enterramos"? Haverá uma entidade consciente que, embora imaterialmente, diz: "Santo Deus! eles enterraram meu corpo, mas sei que estou vivo"?
K - Sim.
N - A essa pergunta é que eu acho difícil responder.
K - É o que Sidney perguntava.
N - Porque é claro que, dos outros vários modos, todos existem após a morte.
K - Agora o senhor pergunta: será que John, essa entidade cujo corpo foi cremado, continua a viver?
N - Será que essa entidade continua a ter consciência de que existe?
K - Eu pergunto se há um John separado.
N - No começo, o senhor disse: "Há um ego permanente?" E respondeu: "Claro que não."
K - Quando o senhor diz que meu irmão John morreu e pergunta se ele vive como urna consciência isolada, eu indago se ele, em algum momento, esteve desligado da corrente.
N - Sim.
K - Está acompanhando o que estou dizendo, senhor?
N - Havia um John vivo?
K - Enquanto John vivia, estava separado da corrente?
N - A corrente alimentava sua autoconsciência. Sua auto-consciência era a própria corrente a se conhecer.
K - Não, senhor, vamos devagar. É um tanto complicado. A corrente da humanidade é cólera, ódio, ciúme, busca de poder, posição, trapaça, corrupção, poluição. Essa é que é a corrente. Meu irmão John faz parte disso. Enquanto existia fisicamente, ele possuía um corpo físico, mas, psicologicamente, era isso. Em algum momento, portanto, estava separado da corrente? Ou estaria apenas fisicamente separado, crendo, por esse motivo, ser diferente? Compreende meu ponto?
N - Havia uma entidade auto-consciente.
K - Como John.
N - Ele tinha auto-consciência, mas fazia parte da corrente.
K - Sim.
N - Minha esposa, meu filho, meu amor.
K - Mas será que, interiormente, John estava desligado da corrente? Esse é o meu ponto de vista. Portanto o corpo dele é que está morto. John continua como parte da corrente. Na qualidade de seu irmão, gosto de considerá-lo diferente já que ele vivia comigo como um ser fisicamente separado. Interiormente, contudo, ele fazia parte da corrente. Por conseguinte, havia algum John realmente distinto da corrente? Se havia, o que acontece então?
N - Há uma corrente vista de fora e outra, de dentro. No momento de um ato vulgar, a vulgaridade é uma coisa distinta do homem que pratica o ato. Vemos essa vulgaridade por fora e dizemos que é um ato vulgar. Mas eu, que estou ofendendo alguém, vejo o ato de outra maneira. Eu estou consciente no momento em que ofendo. De fato, eu ofendo porque estou pensando conscientemente. Eu ofendo para me proteger.
K - O meu ponto de vista é que é isso que está acontecendo com milhões de pessoas. Enquanto estiver nadando nessa corrente, sou diferente dela? Será que o John real difere da corrente?
N - Será que alguma vez houve um John?
K - É exatamente esse o meu ponto.
N - John resultava de uma decisão consciente.
K - Sim. Eu posso inventar, imaginar que sou diferente.
N - Havia uma imagem, um pensamento que se denominava a si mesmo John.
K - Sim, senhor.
N - Mas será que esse pensamento ainda se autodenomina John?
K - Acontece que eu pertenço a essa corrente.
N - Nós sempre pertencemos à corrente.
K - Não existe uma entidade separada como John, que era meu irmão e que, agora, está morto.
N - Está afirmando que não havia nenhum indivíduo?
K - Não. A isso é que chamamos permanente. O ego permanente é isso.
N - Que pensamos ser individual?
K - Individual, coletivo, o eu.
N - Sim, a criação do pensamento que se considera o eu.
K - Pertence a essa corrente. Portanto, será que alguma vez houve um John? Só existe um John quando ele está fora da corrente.
N - Certo.
K - Desse modo, estamos tentando descobrir, primeiro, se há um ego permanente que encarne.
N - O ego, por natureza, é impermanente.
K - Toda a Ásia aceita a reencarnação e as pessoas que, atualmente, acreditam nela afirmam que há um eu permanente. Levamos muitas vidas até que ele se dissolva e se absorva em Brahma e tudo mais. Haverá, contudo, uma entidade permanente - uma entidade que dure séculos? É claro que não existe essa entidade permanente. Eu gosto de pensar que sou permanente. Eu identifico minha permanência com meus móveis, minha esposa, meu marido, as circunstâncias. Mas isso são apenas palavras e imagens do pensamento. De fato, eu não possuo esta cadeira. Eu digo que ela é minha.
N - Exatamente. Pensamos que possuímos a cadeira.
K - Gosto de pensar que a possuo.
N - Mas é tão-somente uma idéia.
K - Portanto, veja: não há um eu permanente. Se houvesse, ele seria a própria corrente. Percebendo, porém, que sou como o resto do mundo, que não há nenhum K separado, nem John, como meu irmão, então, se saio da corrente, posso encarnar. Posso encarnar no sentido de que a mudança ocorre fora da corrente. Na corrente não há mudança.
N - Se há permanência, ela se dá fora da corrente.
K - Não, senhor; a permanência e a semi-permanência são a corrente.
N - Nesse caso, não é permanente. O que é permanente não faz parte da corrente. Por conseguinte, se há uma entidade, tem de estar fora da corrente. Portanto, o verdadeiro, o permanente, não é uma coisa.
K - Não está na corrente. Quando Naudé faz parte da corrente e morre, a corrente, com seu fluxo, é semi-permanente. Mas se Naudé disser: "Vou sair da corrente, não na próxima vida, mas, agora" - então ele já não fará parte dela e, desse modo, nada há de permanente.
N - Não há coisa alguma para reencarnar. Portanto, o que reencarna, se é que é possível a reencarnação, não é, em absoluto, o permanente.
K - Não. É a corrente.
N - É demasiado terra-a-terra.
K - Não coloque a coisa dessa maneira.
N - Uma entidade separada não é real.
K - Não - enquanto fizer parte da corrente.
N - Eu, de fato, não existo.
K - Não há entidade isolada. Eu sou o mundo. Quando saio do mundo, há algum eu que continue?
N - Exatamente. Magnífico!
K - Portanto, o que estamos tentando fazer é justificar a existência da corrente.
N - É o que estamos fazendo?
K - Claro; é o que fazemos quando afirmamos que devemos ter muitas vidas e que, por isso, devemos continuar na corrente.
N - O que estamos tentando é demonstrar que somos diferentes da corrente.
K - Mas não somos.
N - Não somos diferentes da corrente.
K - Isso mesmo, senhor. E o que acontece? Se não há nenhum John permanente nem K nem Naudé nem Zimbalist, o que é que acontece? O senhor deve lembrar-se: creio que li, na tradição tibetana ou qualquer outra, que, quando uma pessoa está morrendo, o sacerdote ou o monge entra no quarto, manda toda a família sair, fecha a porta e diz ao moribundo: "Olhe! Você está morrendo. Largue todos os seus antagonismos, experiências mundanas, ambições. Livre-se de tudo isso porque você vai ao encontro de uma luz na qual mergulhará se estiver livre. Do contrário, voltará, voltará à corrente. Estará, outra vez, na corrente."
N - Sim.
K - Portanto, o que acontece quando saímos da corrente?
N - Quando saímos da corrente, deixamos de existir. Mas o que existia tinha sido criado pelo pensamento ...
K - Que é a corrente.
N - A vulgaridade.
K - A vulgaridade. E o que lhe acontece se sair da corrente? Essa saída é a encarnação. Sim, senhor. Mas isso é algo novo em que penetra. É uma nova dimensão que surge.
N - Sim.
K - E, então, o que acontece? Está seguindo? Naudé saiu da corrente. O que acontece? Já não é mais o artista nem o homem de negócio. Já não é mais político nem músico. Todas essas identificações fazem parte da corrente.
N - Todos os atributos.
K - Todos os atributos. Quando nos desembaraçamos de tudo isso, que acontece?
N - Não temos identidade alguma.
K - Aqui é que está a identidade - Napoleão, por exemplo, ou qualquer outro dito líder mundial. Eles mataram, trucidaram. Praticaram todos os horrores imagináveis. Viveram e morreram na corrente. Tudo isso é muito simples e claro. Mas, de repente, há um homem que sai da corrente.
N - Antes da morte física?
K - Evidente. Do contrário, não teria graça.
N - Então surge outra dimensão.
K - E o que acontece?
N - Ao fim de uma dimensão conhecida começa uma nova dimensão; mas não podemos comprová-la uma vez que toda comprovação se fará nos termos da dimensão em que nos encontramos.
K - Sim. Mas suponha que, agora, enquanto vive, saia da corrente. Que acontece?
N - Isso é a morte, senhor.
K - Não, senhor.
N - É a morte; mas, não, a morte física.
K - Veja: o senhor sai da corrente. Que acontece?
N - Nada se pode dizer sobre o que acontece.
K - Um momento, senhor. Veja: nenhum de nós sai do rio e é no rio que estamos sempre tentando alcançar a outra margem.
N - É como, na insônia, falar do sono profundo.
K - Isso mesmo, senhor. Nós somos parte da corrente - todos nós. Fazendo parte da corrente e sem jamais sair do rio, o homem deseja alcançar a outra margem. Então, o homem diz: "Muito bem; percebo esse engano, o absurdo de minha atitude."
N - Na velha dimensão não se pode falar da outra.
K - Então, eu saio dela. A mente diz: "Fora!" Ele sai e o que sucede? Não verbalize.
N - Dentro da corrente, a única coisa que cabe, em relação a isso, é o silêncio, pois é o silêncio da corrente. E podemos também dizer que é a morte da corrente. A isso, na expressão da corrente, muitas vezes se chama esquecimento.
K - Sabe o que significa sair da corrente? Não possuir mais um caráter, um modo de ser.
N - Não ter mais memória.
K - Não, senhor, veja: é não ter mais um modo de ser, uma vez que possuir um caráter ainda é coisa da corrente. No momento em que nos consideramos virtuosos ou não virtuosos, ainda fazemos parte da corrente. Sair da corrente implica sair de toda essa estrutura. Portanto, a criação, como entendemos, ainda está na corrente. Mozart, Beethoven, os pintores, todos eles se encontram nela.
N - Às vezes me parece, senhor, que o que está na corrente é como que animado por algo que está além.
K - Não, não, não pode ser. Não diga isso, pois, dentro da corrente, eu posso criar. Posso pintar quadros maravilhosos. Por que não? Posso compor as mais extraordinárias sinfonias; possuir toda a técnica.
N - Por que, então, são coisas extraordinárias?
K - Porque o mundo precisa disso. Há necessidade, há procura e há o preenchimento. Eu me pergunto o que sucede ao homem que realmente sai. Dentro do rio, a energia está em conflito, em contradição, em luta, na vulgaridade. E isso acontece o tempo todo.
N - Eu e você.
K - É. O tempo todo. Quando ele sai da corrente, não há mais divisões tais como meu país e seu país.
N - Nenhuma divisão.
K - Nenhuma divisão. Portanto, que espécie de homem, que espécie de mente é essa que já não divide mais? É energia pura, não? Desse modo, o que nos interessa é a corrente e sair dela.
N - Isso é meditação. Essa é a meditação real, pois a corrente não é a vida. A corrente é inteiramente mecânica.
K - Devo morrer para a corrente.
N - A todo momento.
K - A todo momento. Por isso tenho de rejeitar John, que está na corrente; não devo ficar preso a ele.
N - Precisamos repudiar tudo que é da corrente.
K - Significa isso que tenho de rejeitar meu irmão. Vejo que ele é parte da corrente e, no momento em que me afasto dela, minha mente se abre. Creio que isso é compaixão.
N - Quando se olha a corrente fora dela.
K - Quando o homem sai da corrente e olha para ela, sente compaixão.
N - E amor.
K - Vê, portanto, senhor, que a reencarnação, encarnar repetidamente, é coisa da corrente. Isso não serve para consolar ninguém. Eu comunico ao senhor que meu irmão morreu ontem e o senhor me diz tudo isso. Vou considerá-lo um homem extremamente cruel. Mas o senhor está lamentando por si mesmo; está lamentando por mim e pela corrente. E por isso que as pessoas não querem saber. Quero saber onde está meu irmão; não, se ele está.







Boletim 57 (1988) da Krishnamurti Foundation of America
Carta de Notícias no 256 - julho-dezembro/1988
Trad.: Vanfredo. Rio, 1988